A Diplomacia do Evangelho
O Papa Francisco reuniu-se há duas semanas, no Vaticano, com o corpo diplomático da Santa Sé, representando-o a ele, Pontífice, nos diversos países do mundo e nas organizações internacionais, com os quais a Igreja Católica (enquanto Estado) tem relações diplomáticas.
Mais de cem representantes pontifícios – Núncios Apostólicos e Observadores Permanentes – reuniram-se pois com o Papa Francisco, que convocou reuniões similares de representantes pontifícios em 2013 e 2016, e expressou o seu desejo de que as reuniões trienais continuem no futuro.
Nesta reunião mais recente, Francisco decidiu dialogar com os representantes papais, em vez de proferir um discurso planeado. O texto do discurso, que ele descreveu como “meditação sobre o papel do núncio”, foi entregue aos Núncios Apostólicos e Observadores Permanentes, para posterior reflexão.
O DECÁLOGO DO DIPLOMATA DA IGREJA
Nas observações preparadas, o Santo Padre ofereceu aos representantes pontifícios uma espécie de “decálogo” de dez qualidades que caracterizam um núncio.
O núncio, diz ele: “é um homem de Deus, seguindo a Deus em todas as coisas; e um homem da Igreja; um núncio não se representa a si mesmo, mas a Igreja e especialmente o Papa; ele faz presente e simboliza o Santo Padre, servindo como uma ponte que liga o Vigário de Cristo e as pessoas a quem ele é enviado”.
O Papa Francisco afirma que o núncio é um homem de zelo apostólico, com “o dever de iluminar o mundo com a luz do Ressuscitado, de levar Cristo até os confins da terra”. Ao mesmo tempo, ele deve ser um homem “de mediação, de comunhão, de diálogo e de reconciliação”, que deve ser imparcial, buscando apenas justiça e paz.
O núncio também deve ser um homem de iniciativa, capaz de reconhecer e enfrentar os desafios do momento presente, evitando tanto a rigidez quanto a “flexibilidade hipócrita e camaleónica”.
O Papa Francisco diz ainda que o núncio é também um homem de obediência, “chamado a seguir o estilo de vida de Jesus de Nazaré”.
A vida de um núncio também deve ser marcada pela oração, sublinha o Papa, que traz a verdadeira “familiaridade com Jesus”, a quem ele é chamado “comunicar, proclamar, representar”. O Papa Francisco recorda aos representantes papais que “a oração, o caminho do discipulado e a conversão encontram na caridade a partilha da verificação da sua autenticidade evangélica”.
QUE DESAFIOS?
Mas para pôr em prática estas palavras inspiradoras, que desafios enfrenta um diplomata da Santa Sé, para o qual a mensagem pontifícia deva servir de guia?
Eu diria, resumidamente (e visto a partir de fora) que enfrenta os desafios da mundanidade e do relativismo (a Igreja é um Estado como os outros e a sua diplomacia defende interesses iguais aos dos outros Estados). E os desafios daquilo a que eu poderia chamar a moda da democracia laica, aplicada a uma instituição, a Igreja, entendida do ponto de vista exclusivo da sua organização humana e política.
Assim, no primeiro caso, a falta à verdade poderia ser vista como meio aceitável para defender o prestígio da Igreja no mundo. E a sua adequação ao tempo presente, modernizando-se segundo as modas ou ideias dominantes, poderia ser considerada uma necessidade de sobrevivência.
Ora, uma Igreja que adoptasse a mentira como táctica trairia os seus fundamentos – e sempre que o fez, idem, idem. E uma Igreja preocupada em modernizar-se, para não perder “clientela”, sem atentar à fidelidade ao legado que recebeu do Fundador, seria um edifício que se desmoronaria muito depressa. Ora, a Igreja tem dois mil anos.
E no segundo caso, o Santo Padre poderá ser encarado como um chefe de facção, no seio da instituição, cuja legitimidade dependeria da sua base de apoio interna, como acontece com um líder “normal”, em qualquer sistema político.
Mas se assim fosse, como se adequaria isso à sua missão como Vigário de Cristo? Impossível!
Naturalmente que a mensagem do Papa se reporta a uma outra realidade, a outros valores e a outras atitudes.
A NATUREZA DA IGREJA
Sendo um Estado no plano jurídico-internacional (a Igreja Católica é de facto a única organização religiosa mundial com tal estatuto), é na verdade um Estado muito especial, sem exército, com fronteiras internacionais estabelecidas mas invisíveis, incrustado que está o seu território no meio de uma grande capital europeia; e um Estado em que a maioria esmagadora dos seus “súbditos”, os milhões de católicos através do mundo, não tem com ele quaisquer relações de nacionalidade ou cidadania.
Este Estado singular não perfilha uma ideologia política, mas é o herdeiro ou transmissor de uma mensagem, considerada divina para pelos seus fiéis. E, outra originalidade, o conteúdo da mensagem não se dirige necessariamente ou principalmente às autoridades, mas à população em geral, mormente aos católicos.
E é em articulação com a hierarquia da Igreja nos diferentes países que o representante do Papa, o núncio, segue o que vai sucedendo naquele país, reporta à Santa Sé e tem as intervenções julgadas oportunas ou úteis, mormente junto dos Governos nacionais.
Que áreas merecerão a atenção do núncio? Indicaria as seguintes:
A – O diálogo no interior das sociedades. Muito resumidamente: 1) Diálogo Social e realidade económica; 2) Marginalização social e pobreza; 3) Liberdade religiosa; 4) Relações inter-religiosas; 5) Racismo e xenofobia; 6) Modernidade e tradição cultural ; 7) Desafios éticos do progresso científico.
E quanto ao diálogo entre nações? Ajudar a diagnosticar as fontes de conflito e oferecer mediação.
B – A Igreja e as Nações Unidas. A Santa Sé como o “Governo” da Igreja Católica, assim como as organizações católicas internacionais, são fortes defensoras da Organização das Nações Unidas (ONU) e participam activamente das deliberações e actividades deste organismo mundial.
O alcance e a natureza do envolvimento da Santa Sé e das organizações católicas no trabalho das Nações Unidas são determinados pelos mandatos e programas executados pela Organização das Nações Unidas.
A fim de realizar os diversos mandatos e funções, a ONU – desde a sua criação – estabeleceu gradualmente um grande número de entidades organizacionais especializadas que agora compõem a chamada Família das Organizações das Nações Unidas.
Como se vai ver, a Diplomacia do Evangelho não tem mãos a medir.
O envolvimento da Santa Sé nas Nações Unidas consiste rotineiramente na cobertura de todos os itens da agenda da ONU, mas com ênfase nas áreas prioritárias que incluem:
– protecção e promoção da dignidade da pessoa humana e a família tradicional;
– promoção da paz e de acordos pacíficos de disputas internacionais;
– desarmamento;
– protecção dos Direitos Humanos e, em particular, a protecção da liberdade religiosa;
– alívio da pobreza;
– desenvolvimento económico e social e assistência humanitária.
Carlos Frota