Vamos começar tudo de novo?

Vamos começar tudo de novo?

É conhecida a pergunta de Hitler sobre quantas divisões tinha o exército do Papa Pio XII, para ousar defrontar a invencível armada do seu império de mil anos. É conhecida a resposta que os acontecimentos deram à sua prosápia.

Hitler não conhecia o inimigo invisível que o combatia, a insaciável vontade do Ser Humano de se não escravizar à ideologia racista, saída da sua mente tresloucada.

A aventura de Hitler e de Mussolini acabou como se sabe. E dos escombros de uma Europa em ruínas, uma nova ordem mundial surgiu.

Em parte do Velho Continente, pelo menos, procurou começar-se tudo de novo, tentando superar-se o fatídico destino de uma Europa ciclicamente envolvida numa nova guerra civil. Europeia.

Mais de sete décadas volvidas, o mundo procura novos caminhos. A Ásia e a China em particular ascenderam ao primeiro plano dos poderes mundiais. E é no meio de uma delicada transição da velha para uma nova ordem internacional que esta pandemia ocorre, com todos os efeitos devastadores. Os conhecidos. E os mais duradouros, a médio/longo prazo, que só o passar do tempo revelará.

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Afinal o mundo é mesmo frágil. Não tínhamos bem a consciência disso, mas agora temos. Ou começamos a ter. Bastou um ser microscópico, a que pressurosamente conferimos já o estatuto militar de “inimigo invisível” para varrer, dum ápice, certezas absolutas.

(Num breve parêntesis, já temos inimigo para esta guerra inesperada, mas não possuímos a arma com que combatê-lo, a ansiada vacina. Que há de vir depressa, afiançam quer os investigadores compadecidos da sorte do mundo, quer os charlatães à espera de lucros à escala global).

Afinal o mundo é mesmo só um. Bastou o tal ser microscópico, que não usa passaporte para viajar e se ri (microscopicamente, claro!) da burocracia das fronteiras, para percebermos o quê?

Pois que os muros físicos, políticos e culturais que fomos criando, no decurso de milénios têm, em circunstâncias como a que vivemos hoje, a solidez da gelatina!

Talvez se tivéssemos consciência de quanto é mesmo muito frágil tudo o que nos rodeia, desde o planeta na sua inteireza às variadíssimas expressões de vida dentro dele, não tivéssemos cometido os crimes colectivos de que a consciência de cada um justamente o acusa, quer as gerações passadas quer a nossa: os crimes contra a Natureza (de que as alterações climáticas são a última expressão) até ao equilíbrio pelo terror garantido pelos arsenais nucleares, manifestação a mais evidente de que o Ser Humano é louco.

Não foi, aliás, esta mesma ideia, a da loucura promovida a regra de conduta, que se colou por analogia ao sistema de equilíbrio nuclear da Guerra Fria, o tristemente famoso sistema MAD (mutual assured destruction)?

Pois o inimigo invisível, além das mais óbvias consequências para o quotidiano de indivíduos e das famílias, veio salientar ainda outros aspectos do nosso viver, a nível global. Que as últimas décadas permitiram que se forjassem laços de complementaridade por conseguinte de dependência recíproca que, podendo embora reequilibrar-se, nunca mais será possível pôr inteiramente em causa.

Quer se goste, muito ou pouco, ou não se goste de todo da globalização, o seu legado é já imperecível. Não vemos aliás hoje, num mundo dominado por tudo o que se vem desenvolvendo no universo digital, outras formas de organização que não sejam comuns à Humanidade no seu todo – ou com vocação a sê-lo.

O muro na fronteira do México, legado simbólico forte de uma presidência e de um Presidente com medo do futuro, serve também de analogia ao mundo compartimentado do passado.

O mundo é realmente frágil. E a economia e toda a sua poderosa, complexa organização, frágil é, frágeis são. Bastaram umas poucas semanas de quarentena das populações (com a deserção dos consumidores e a consequente suspensão dos consumos) e – catrapus – o chamado rei negro, o petróleo, cai desamparado do seu trono e à míngua de espaço, já todos se querem ver livres dele! E quem o produz e dele vive, vê os tanques cheios… mas vê também, pesarosamente, os cofres vazios.

Países produtores do crude e que há muito sabem que este é recurso finito, debatem e adiam os modos de as respectivas economias passarem a não depender dele. Pois agora, com esta crise pandémica e suas consequências na economia global, têm um exercício em tamanho real do que poderá ser uma vida sem (tantos) petrodólares…

Já imaginaram um Médio Oriente sem petróleo, ou sem a renda do petróleo que durante quase um século alimentou as fantasias e os caprichos de tantos e sucessivos líderes? Já imaginaram os hotéis de luxo das respectivas capitais vazios dos frequentes vendedores de tudo aquilo que o dinheiro pode comprar, mormente no capítulo dos equipamentos militares, para alimentar guerras presentes e guerras futuras que nunca serão as suas, mas doutros?

Já passou certamente pela cabeça da maioria de nós o quanto em certas regiões do mundo, onde os recursos naturais se converteram em riquezas fabulosas, tantas oportunidades se perderam de converter tais recursos em medidas concretas de desenvolvimento, de modo a tornar impensável a simples noção de pobreza. É escandaloso haver pobres em terra rica ou muito rica – parece ditar o simples bom senso. Mas não, não é desse modo que as coisas se passam…

O mundo é assim feito! – dir-se-á em jeito de consolação. Pois é!, apetece retorquir, até vir o próximo inimigo invisível, este mesmo ou outro, para pôr de pernas para o ar o único mundo que temos.

O mundo é mesmo frágil! Tudo o que temos de mais certo pode falhar, de um momento para o outro, como se de terramoto generalizado se tratasse.

Para quê insistir na ideia?

De cada grande catástrofe, como florzinha nascida em terra queimada, parece brotar, como que por milagre, a mesma pergunta de sempre: Vamos começar tudo de novo?

Assim foi depois de cada grande conflito mundial. Como se o Homem, lavado no sangue das suas próprias vítimas e dos seus algozes, e caído do seu pedestal de pseudo-divindade, se quisesse erguer com uma nova determinação, a de ser verdadeiramente “mais humano” e de construir finalmente uma nova terra de fraternidade e paz

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A pandemia do coronavírus ocorre, como já disse, num momento delicado do sistema internacional.

Como recordei anteriormente, o mundo procura novos caminhos. A China, de forma muito particular, é hoje actor de primeiro plano no concerto dos poderes mundiais. E é no meio de uma delicada transição da velha para uma nova ordem internacional que esta pandemia ocorre, com todos os efeitos presentes, a médio e a longo prazo.

Fala-se já de uma quebra dos laços de cooperação internacional, antevendo-se o espírito de egoísmos nacionais exacerbados pela vontade de recuperar o tempo perdido. A China, pelo contrário, propõe claramente a refundação do espírito da comunidade internacional a que aderirão todos os que retirarem desta crise as devidas lições sobre a necessidade absoluta de colaboração entre Estados e povos.

Vamos começar tudo de novo? Não vamos, respondo eu, nem será preciso, se os líderes mundiais se lembrarem que o mundo é frágil e que o exercício imoderado do poder à escala global, por dois ou mais poderes, será em detrimento de todos.

Carlos Frota

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