FILHO DA TERRA LEMBRA EPISÓDIOS QUE MARCARAM PRÉ-HANDOVER
A expressão de que o mundo é pequeno teve no início de Dezembro, mais uma vez, aplicação prática. Estivemos nas Caldas da Rainha, naquele que é considerado o maior e melhor evento de Street Food de Portugal. No último dia e debaixo de chuva, o nosso último cliente foi um macaense. Não interessa quem foi, pois para nós todos os clientes são iguais. Contudo, assim que começou a falar ficámos com a impressão de ser uma cara conhecida. Depois de adicionado o facto de estar acompanhado de uma senhora de etnia chinesa e de falarem Cantonense entre eles, as dúvidas dissiparam-se.
Após terem comido – e repetido – encetámos conversa e ficámos a saber que este macaense saiu de Macau bem cedo, no início da década de noventa, e que trabalhava na área jurídica do território. Como, segundo as suas palavras, se adivinhava um futuro menos risonho para as pessoas na área jurídica, decidiu «sair quando ainda estava na mó de cima», como nos explicou.
Curioso com a história e com o facto do senhor ter deixado Macau quase na altura em que eu cheguei, tentei saber onde havia trabalhado. Pelas pessoas que mencionou e pelo círculo de amigos que disse ter, é quase inevitável que tenha trabalhado em áreas muito próximas da Nam Kwong e dos interesses chineses de Macau.
Foi interessante falar sobre pessoas conhecidas, sobre incidentes que aos olhos dos portugueses foram encarados de determinada forma, mas que aos olhos dos chineses a versão da história é outra, por vezes completamente diferente. Dado que estava a chover e o casal se havia deslocado de propósito para comer as nossas especialidades, e não havia mais clientes para serem atendidos, ficámos na conversa umas boas duas horas. Falámos ainda de incidentes bem conhecidos do grande público e de outros que por limitação linguística ou étnica não tínhamos conhecimento. Uma vez que a maioria do amigos e conhecidos do senhor, pertencente à comunidade macaense, é também minha conhecida, houve razão mais do que suficiente para que a conversa se estendesse por muito tempo.
Quando lhe perguntei se tinha saudades de Macau, disse que «sim», mas «do Macau de antigamente». Não se trata de um saudosismo colonialista, mas sim de saudades da «vida boa, da qualidade de vida que se tinha. Do ar limpo, do espaço e da amizade entre as pessoas de diferentes etnias». Apesar de tudo, mesmo com os diferentes interesses sempre expostos em cima da mesa, havia uma sã convivência que hoje dizia já não sentir.
Da infância pouco se lembra, ou não quis referir, mas sempre deixou escorrer que a casa da família era na San Ma Lou, imóvel que ainda está na posse de um irmão. Fica ali para os lados do Kampek, pelo que consegui descortinar.
O nosso interlocutor vive em Portugal desde que deixou Macau e nunca mais exerceu qualquer profissão na área jurídica. Quando veio para a “metrópole” fê-lo com a bênção dos seus superiores chineses. Na sua festa de despedida estiveram presentes personalidades de ambas as etnias, referiu com orgulho.
Tem uma visão muito pessoal da realidade intercultural de Macau, sendo que em resultado disso transmitiu-nos um outro ponto de vista sobre os incidentes que marcaram os últimos anos da Administração Portuguesa: desde as cânforas compradas por um ex-governador, que sempre afirmou terem-lhe sido oferecidas, numa rua transversal à San Ma Lou, a qual dava para a janela da sala da casa dos seus pais, ao rapto de um conhecido homem de leis que apenas foi resolvido depois de terem apelado ao então indigitado Chefe do Executivo.
Durante os quatro dias que passámos nas Caldas da Rainha tivemos em contacto com milhares de pessoas, mas infelizmente, no decorrer do nosso trabalho, raramente temos possibilidade de conversar com os clientes. É pena porque, pelo que nos vamos apercebendo, todos têm histórias interessantes para contar. Possivelmente porque vendemos comida asiática grande parte dos nossos clientes tem alguma afinidade com esta parte do mundo. Seja por ali terem vivido, ali terem passado férias ou estarem a planear uma visita para breve.
Temos também muitos clientes que são estrangeiros, uns viajam e outros vivem em Portugal. Sendo pessoas mais viajadas do que o comum dos portugueses, o contacto com novas experiências é algo a que estão habituados e que aceitam com a maior das naturalidades. Mesmo os estrangeiros que não conhecem a comida tailandesa não se mostram renitentes em experimentá-la. Já quando se trata de portugueses, a ansiedade e o medo do desconhecido é mais evidente.
A nossa experiência na área do Street Food em Portugal ainda não é muita. No entanto, tendo em conta a idade do fenómeno em Portugal (o evento mais antigo tem cinco anos), somos dos mais antigos. Vimos pois com alguma tristeza a falta de oferta de food trucks de comida asiática. Há dois ou três de “sushi”, que na realidade nunca vimos funcionar. Há outros dois que vendem “baos”, apelidando-se como sendo de Taiwan… E nada mais, para além da nossa comida tailandesa.
Soubemos há tempos que foi aventado um projecto, por parte de um jovem empreendedor de Singapura a viver em Portugal, para um food truck de especialidades da Malásia e de Singapura. Recentemente ficámos a saber que afinal vai vender salsichas alemãs. Lá se foi a minha esperança de comer um bom “nasi goreng”!
Não se entende que num país como Portugal, com tanta diversidade cultural, com inúmeras comunidades asiáticas, que não haja mais carros de comida desta parte do mundo. Devia haver de comida filipina, chinesa, vietnamita e até macaense. O “minchi”, o “chipapau” e outros pratos de fácil confecção seriam excelentes opções para animar o panorama do Street Food em Portugal.
João Santos Gomes