My Tho, celeiro do Vietname
Fundada em 1680 por chineses escapulidos de Taiwan – numa altura em que todo Império do Meio estava sob o domínio dos manchus da dinastia Qing – My Tho, em pleno delta do Mekong, no Sul do Vietname, é uma pequena cidade com um desses encantos cada vez mais raros. Basta‐me parar uns cinco minutos no jardim junto à estátua de Nguyen Huan, herói do movimento anticolonialista, para ouvir a inevitável pergunta: “Importa‐se que pratique Inglês consigo?”.
Em grupos de dois ou três, normalmente tímidos, limpando as vozes com tosses nervosas, grupos de jovens aproveitam a presença de um estrangeiro para pôr em prática os seus conhecimentos linguísticos. «São estudantes do nosso liceu», informar‐me‐á mais tarde o professor de Francês Hoan Tran Van, também ele em busca de alguém com quem dialogar. «Sentem vergonha por estarem na presença de um estrangeiro. Espero que os compreenda». À semelhança de dezenas de outras pessoas, Tran Van vem ao parque todos os fins de tarde gozar da brisa marinha, junto ao pequeno ancoradouro onde desemboca a avenida Le Loi, a principal artéria de My Tho.
Nguyen Huan, hirto no seu pedestal de cimento armado, em frente à lota lacustre, parecia guardar o ponto de confluência entre o canal de Bac Dinh e o majestoso Mekong, em cujas margens nasceu e cresceu esta pequena urbe de noventa mil habitantes que vive essencialmente da pesca e do cultivo do arroz. Abundam também as bananas, as mangas e os frutos cítricos. My Tho foi, até há bem pouco tempo, o protótipo da pacata cidadezinha colonial, que, à sombra dos coqueiros disseminados pelo interior das ruas perpendiculares, aguardou pacientemente a chegada dos arranha‐céus engavetados num qualquer gabinete de desenvolvimento urbanístico.
Devido à sua proximidade com Saigão, My Tho constitui a tradicional “porta de entrada” do delta do rio Mekong, tornando-se a cidade, ao longo de todo o século XVII, num dos maiores polos comerciais do Sul do Vietname.
Fundada em 1816, a igreja matriz, construção sólida de um amarelo pastel, é o símbolo absoluto dos seis mil católicos que ali vivem, como me informa Ngo Quyen, secretário da paróquia local e outro dos candidatos à prática do idioma francês, que fala com desenvoltura, já que serviu no exército colonial durante anos a fio. Quyen sabe muito bem que foram os portugueses os primeiros estrangeiros a aportar a Faifo, hoje Hoi An, bem mais a norte, trazendo com eles os primeiros jesuítas propagadores da fé cristã no Vietname. Enquanto bebemos chá, Ngo, que exerce as funções do pároco, ausente, fala‐me do culto mariano, «bastante enraizado no nosso país», um culto comprovado nas paredes e numa das colunas da igreja que sustenta a estátua de Nossa Senhora de Fátima alumiada por um néon fosforescente que forma as palavras “Ave‐Maria”. Nas paredes vêem‐se placas de mármore evocativas com agradecimentos, em Francês e Vietnamita. “Duc me, Merci Fatima, Ca Mon Fatima”. É o culto da Virgem nas igrejas e as fotos de certos futebolistas portugueses nas páginas das populares revistas desportivas. Quer se goste ou não, a bola e a religião continuam a ser os melhores embaixadores de Portugal.
A igreja de My Tho abre as suas portas às quatro e meia da manhã, a missa celebra‐se às cinco, e sempre que há funeral a vizinhança acorda ao som de uma banda de música, pois – e essa é uma particularidade vietnamita – o luto demonstra‐se com música e roupa branca. «O Catolicismo no nosso país assimilou muitas das tradições budistas e taoistas», explica Ngo Quyen.
Dias depois testemunharia uma cerimónia fúnebre que confirmou estas palavras. Convidado a sentar‐me com um grupo de amigos do defunto, tive a oportunidade de assistir a um interessante ritual que envolvia beber café e comer uvas e biscoitos, tudo numa salutar e amena cavaqueira. O velório era católico, embora os elementos fossem orientais, trazendo‐me à memória cerimónias idênticas associadas ao culto dos mortos. Eram cristãs as velas, as imagens de Cristo e da Virgem, duas freiras que ali estavam e as cruzes brancas destacando‐se dos veludos negros colocados à entrada e por detrás do caixão de madeira. Tudo o resto transparecia a budismo de inspiração sino-vietnamita: os paus de incenso a arder junto à foto da defunta; as oferendas embrulhadas em celofane amarelo e vermelho – as cores sagradas; as flores, o arroz e os tabuleiros com frutos; a fita branca em volta da cabeça e as vestes alvas dos participantes.
Na madrugada seguinte, depois da missa cantada, o cortejo seguiu pelas ruas da cidade, abrilhantado pela banda de música vestida a rigor. Sem dúvida, uma maneira diferente de ver a morte. A algumas dezenas de metros da igreja havia um mercado que funcionava praticamente vinte e quatro horas por dia, estendendo‐se ao longo de ambas as margens do movimentado canal de Bac Dinh, que liga My Tho a Saigão, verdadeira rota onde as embarcações passam num constante rio abaixo, rio acima. Apesar de duas pontes ligarem as duas partes distintas da baixa da cidade, muitas das pessoas utilizam pequenos botes a remos para atravessar o canal.
No mercado vende‐se de tudo, desde lubrificante esverdeado servido à colher a baguetes recheadas de queijo processado, patê e verduras, passando por diversos tipos de pescado, frutos, marisco, galináceos, legumes, múltiplos derivados de soja, hélices e partes de motor.
A florescente arte do cartaz publicitário pintado à mão marca presença por toda a parte: no cimo das portas de entrada das alfaiatarias e dos restaurantes, nos carrinhos dos vendedores de gelados, nos anúncios de cerveja BGI, nos painéis de propaganda do Partido Comunista, e nos das campanhas ferroviárias, de viação, e da prevenção da SIDA.
Com tanto de verdura como de água, a imensa planície do delta do Mekong é o resultado da sedimentação do rio com o mesmo nome, um processo que continua ainda hoje. Quase metade da área total do delta é intensamente cultivada e os terrenos que os veios de água contornam são conhecidos pela sua extrema fertilidade. Produz‐se aqui arroz suficiente para todo o Sul, Centro e algumas zonas do Norte do País. Para além deste alimento de base de todos os povos do Sudeste Asiático, é daqui que sai também a maior parte da cana‐de‐açúcar, dos cocos e de diversas variedades de frutos e pescado. Não é por acaso que chamam a esta região, das mais populosas, “o celeiro do Vietname”.
Os passeios de barco ao longo do Mekong e pelos pequenos canais que se embrenham nas plantações de ananases, coqueiros e bananeiras é um dos principais motivos que trazem os turistas a My Tho. Para o efeito, mobilizaram-se os espíritos mais empreendedores da terra, quase sempre jovens e duplamente ambiciosos: com uma imensa vontade de facturar dongs e mais vontade ainda de praticar o Inglês que tinham aprendido nas salas de aula há uns anos, ou, mais recentemente, com os professores estrangeiros que se iam tornando comuns, sobretudo nas grandes cidades.
Junto ao Mekong, várias agências organizam todo o tipo de viagens fluviais. As mais institucionalizadas, geralmente controladas pelas autoridades locais, têm o quartel‐general em barracões junto ao rio, com cartazes à porta a servir de chamariz e a dar as “boas vindas aos amigos de fora”. Mas, no Vietname, há já muitos anos é a iniciativa privada que está a dar, e My Tho não é excepção. Mulheres abrigadas do sol intenso por chapéus de palha cónicos, junto aos barcos ancorados, chamam o turista com insistentes acenos de mão, apesar de painéis afixados na margem (ou espalhadas pela cidade à mistura com os que eram feitos da campanha contra a SIDA) alertarem para a situação “ilegal” de “certas pessoas não autorizadas” que oferecem os seus serviços a estrangeiros.
No Vietname todos querem ser penfriends do amigo estrangeiro e essa é a razão pela qual escolhe um nome em Inglês, com sotaque ianque, de preferência, que lhes serve de carta de apresentação.
Joaquim Magalhães de Castro