O Nosso Tempo

Como os construtores de catedrais

Com a imagem que o título desta crónica sugere, concluiu o Santo Padre, há dias, a magnífica “lição de sapiência” em que se traduziu a sua tradicional mensagem de Ano Novo, dirigida ao corpo diplomático acreditado na Santa Sé.

A ideia-síntese que tal imagem encerra é a de que, como os obreiros dos magníficos templos cristãos medievais, espalhados pela Europa, que sabiam não poder muitas vezes sobreviver (tão curta a vida para tão grande obra), para testemunhar a própria conclusão: também os seres humanos e as comunidades onde se inserem são chamados a trabalhar para um bem comum que os transcende e se projecta no futuro.

Ouvir o Papa Francisco falar da dignidade do Homem, no centro das relações internacionais (o cerne da sua mensagem), foi como que sentir de súbito uma lufada de ar fresco na sala fechada, de que se abriu de repente uma janela. Ou, para ser benignamente irónico, ouvir do Papa uma lição “errada” de (i)realismo político, esse analisar míope de interesses só de perto do nariz, porque os verdadeiros interesses da humanidade não se vislumbram bem, tão na distância…

Não foi de facto dos imperativos da geopolítica que o Papa falou, nem do primado dos interesses nacionais, nem da defesa das identidades contra refugiados “invasores”, nem dos direitos dos cristãos acima dos direitos de qualquer outra religião.

O Papa não defendeu também indústrias obsoletas, do ponto de vista ambiental, mas apelou de novo e pelo contrário ao pacto entre homem e natureza, para sobrevivência de ambos.

O Papa não se “armou” (passe a expressão ) em chefe de grupo ou de facção, em lobista a interceder pelos interesses de quem lhe paga, em chefe de seita a defender o seu pequeno feudo.

 

Falar das pessoas

O Papa falou, simplesmente, de pessoas. Das pessoas. Como nós. Simbolicamente representando todas. Com que autoridade? Certamente a da função em que está investido, porque doutro modo ali não estaria. Mas mais do que isso.

Este Papa, em particular, é “sufragado” regularmente pelos banhos de multidão que não procura para auto-glorificação, mas que tem de “sofrer” resignadamente, pois têm origem na Mensagem de que é portador. Mensagem que o transcende e de que não passa de efémero porta-voz. E ele sabe-o. Outros virão depois dele, se não embarcarmos nas profecias cataclísmicas do “último Papa”, com que nos brinda profusamente a Internet, como antes toda a literatura pseudo-anunciadora do fim dos tempos…

O Papa falou aos embaixadores dos diferentes Estados das pessoas simples e indefesas que são apanhadas no torvelinho de conflitos, resultantes dos jogos de poder e domínio, de que não têm qualquer responsabilidade.

Das pessoas que são escravizadas em círculos viciosos de pobreza, fome e doença. Das mulheres e crianças que são exploradas nos circuitos sinistros do crime organizado. Dos velhos que são abandonados porque já não prestam.

Das pessoas que são objecto de perseguição indiscriminada, como os Rohingya de Myanmar, a que fez de novo referência, agradecendo o esforço de acolhimento das autoridades do Bangladesh.

 

Que valor? Que utilidade?

A sua mensagem será para muitos uma catequese quase gasta, demasiado sabida e prontamente esquecida, perante as exigências da política concreta. Mas incomodará eventualmente alguns (há que ter esperança!) porque os põe em causa. Porque foi isso o que o Papa quis fazer, fiel, como não podia deixar de ser, aos ensinamentos da Igreja. Quis “desconstruir”, questionando-o, o pensamento e o discurso tradicionais dos Governos das nações, para lhes mostrar o caminho de um bem maior, essa permanente utopia de uma magnífica catedral simbólica: o ser humano, todos os seres humanos, e o respeito que lhe(s) é devido.

Respeito que se traduz, desde logo, pela prevenção da guerra, neste ano de 2018 em que se celebra o centenário do fim do primeiro conflito mundial.

E, mais genericamente, o respeito que se exprime no combate às múltiplas lógicas de poder que, apesar do extraordinário progresso científico e tecnológico, está a criar uma sensação de corrida para o abismo, no plano das relações entre Estados, comunidades, etnias, religiões, etc.

O Santo Padre não se eximiu da responsabilidade de mencionar especificamente as diversas cenas de conflito à escala global, desde a Síria à Ucrânia, insistindo no tema central da sua preocupação, nem as vítimas inocentes de tais conflitos. Que para o Papa, até pela sua profunda sensibilidade e permanente contacto com toda a gente, em todo o mundo, nunca são meros números empilhados em estatísticas frias, mas pessoas concretas, como as que acaricia e abraça em horas e horas de proximidade e contacto.

Daí, dessa percepção muito real da vida das pessoas, das famílias, das crianças, dos idosos, o Papa regressou na sua mensagem ao grande desafio da integração dos refugiados, para os países, Governos e populações que os acolhem. E a esse propósito afastou ao mesmo tempo duas visões extremas, as dos que, de ambos, recusam mudar, como condição do acolhimento do outro.

Pensei imediatamente, ao ouvir o Santo Padre neste ponto preciso, na intransigência “católica” na Polónia que recusa mudar um pouco, com receio da perda da sua visão tradicional (nacional, dizem muitos) de ver o mundo.

Haverá, da parte de alguns sectores dos refugiados, a pretensão de que são os outros que têm que mudar… para os aceitar… posição tão irrealista e geradora de conflitos como a oposta. Mas a necessidade de adaptação tem duas vias, lembra o Papa. A de quem acolhe e a de quem é acolhido. Não é fácil, naturalmente. Mas não há alternativa.

Não como profeta da desgraça, mas como pastor prudente, na belíssima alegoria bíblica, e como profundo conhecedor da História e das misérias da alma humana, o Papa tem falado amiúde de um terceiro conflito mundial que, sem reclamar tal nome, já começou de várias formas. Esta ideia “ incómoda” – mas importante para alertar consciências adormecidas – aflorou novamente neste discurso pontifício de 2018.

 

A concluir

Imagino os diplomatas presentes comentando uns com os outros, à saída da cerimónia, o discurso do Papa. E já nas suas embaixadas, despida a farpela dos grandes dias e arrumadas na gaveta faixas e condecorações, a redigirem comentários judiciosos sobre o que o Papa disse e não disse, os mais inteligentes propondo até o discurso que Sua Santidade devia ter proferido…

O que fica porém na memória dos que ouviram Francisco, fechadas as salas e apagadas as luzes do grande palácio pontifício? Fica a tal lição errada de geopolítica tradicional, ou uma nova proposta, uma geopolítica da fraternidade, onde as batalhas se ganham pela partilha e onde, nesse caso, todos são vencedores? Tudo fantasia, meu caro articulista!, ouço sussurrar em mim o velho diplomata…

E todavia, nunca os cegos fazedores da História, convencidos que estejam de que são inteligentes/iluminados, ficarão inteiramente absolvidos da tragédia imensa de serem só realistas.

Os grandes construtores dos amanhãs são sempre visionários.

Carlos Frota 

Universidade de São José

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