Memória de Eça em Cuba.
O “La Columnata Egipciana”, na rua Mercaderes, em pleno centro histórico da cidade de Havana, café que Eça de Queiroz costumava frequentar, já não se chama “La Columnata Egipciana”. Ou melhor, terá certamente novo nome, só que não foi ainda revelado ao transeunte que depara com os portais encerrados, embora possa olhar para o interior através da longa vidraça. E isto, se o reflexo da luz do dia o permitir. Associa o local à memória do escritor uma placa de mármore afixada na parede da entrada onde, sob a efígie do homem do monóculo, vem escrito, em Castelhano e Português, o seguinte: “Este café foi frequentado pelo grande escritor português Eça de Queiroz (1845-1900), Cônsul de Portugal em Havana. Homenagem do Presidente da República Portuguesa Dr. Jorge Sampaio, 15 de Novembro de 1999”.
Informa-me a senhora da livraria ao lado, a livraria Bolona, que o espaço «abrirá dentro de dias», sendo o Estado o seu legítimo proprietário, embora não me saiba dizer qual o nome que doravante ostentará. Uma breve espreitadela revela um espaço todo ele a remeter-nos para Lisboa. Há, ao fundo, uma imagem da rua da Bica com os dois funiculares e o Tejo ao fundo que serve de cenário a um agradável espaço com uma dúzia de mesas e cadeiras de pau de ébano. Nas paredes, um painel de azulejos retrata a Geração de 70, os ditos “Vencidos da Vida”; outro, um Eça estilizado que me parece saído da pena do Júlio Pomar. Há ainda uma série de fotografias de época que a sépia confirma. «Quase de certeza que aqui se vai beber um café forte e comer uns bons pastéis de nata», digo para com os meus botões. Se a este espaço juntarmos a estátua de Luís Vaz de Camões, inaugurada por um secretário de Estado em 2014, mesmo em frente ao hotel “Ambos Mundos”, onde Ernest Hemingway escreveu o “Por quem os sinos dobram”, contaremos com duas figuras maiores das nossas letras a zelar pela zona mais nobre da capital de Cuba. Um verdadeiro luxo.
Nomeado cônsul de Portugal nas Antilhas Espanholas a 16 de Março de 1872, Queiroz, então com 27 anos de idade, deixa Lisboa a 9 de Novembro e um mês e onze dias depois assume o cargo que lhe estava destinado na capital de Cuba. Seria curta a sua estada na ilha, pois, quinze meses volvidos, o escritor, débil de saúde, pediria transferência para o Consulado de Newcastle, em Inglaterra, cujo clima condizia mais com o seu carácter. Já em 1860, Eça (que morreu com apenas 55 anos de idade) regressara a Portugal bastante debilitado após um périplo de oito meses pelo Egipto e Palestina. Consta que padecia de amebíase, doença crónica muito comum no Médio Oriente, e, pelos vistos, também em Cuba. Mesmo assim, os quinze meses de actividade em Havana seriam interrompidos, em 1873, com uma ausência de cinco meses e meio nos Estados Unidos e no Canadá. Recatado por natureza e pouco dado ao convívio – assim procedera em Inglaterra e França, de onde enviou inspirada correspondência compilada mais tarde em livros – Eça praticamente não se integrou na sociedade local, nem mesmo nos círculos académicos. Não obstante, seria decisiva a sua influência nos escritores cubanos do início do século XX, como o revela Ángel Lázaro nas páginas da revista Carteles: “Eça de Queiroz foi um escritor que influiu muito beneficamente na literatura e no jornalismo cubanos da nossa época”. Não será exagerado afirmar que foi um verdadeiro ídolo para a geração de cronistas que entre 1917 e 1918 perorou para a revista Cuba Contemporánea. Os seus livros foram mais lidos em Cuba do que os de qualquer outro prosador estrangeiro de então. Fascinava os homens das letras locais a sagaz ironia e a arte de bem escrever do literato português. Era de tal forma popular o autor d’Os Maias que a numerosa colónia galega de Havana o designava de “o nosso Eça”. Ainda hoje, para os cubanos cultos, Queiroz é referência incontornável da literatura mundial.
Embora breve, mostrar-se-ia bastante intensa a actividade consular do escritor. Arribavam então a Cuba, acamados, na mais vil das condições, em porões de navios das mais variadas proveniências, milhares de chineses. Eram os designados cules, recrutados no interior da China (sobretudo na província de Cantão) e “secretamente” embarcados em Macau. Esse lucrativo quão infame tráfico tivera início em 1851 e era o resultado indirecto da abolição da escravatura ocorrida seis anos antes. Visava, sobretudo, suprir a falta de braços na então colónia espanhola e toda essa gente tinha como destino as gigantescas plantações de cana-de-açúcar. Chegavam ali com “contratos” de oito anos e findos estes ficavam impossibilitados de regressar à China. O facto de partirem oficialmente para Cuba do enclave português de Macau tornava-os, de certa forma, súbditos portugueses, e, portanto, passíveis de reclamar os seus direitos civis perante os colonos e as autoridades espanholas da ilha. Valer-se-ia deste argumento Eça de Queiroz para tentar mitigar as árduas condições laborais, ao mesmo tempo que tentava neutralizar o feio trato através de relatórios enviados para Lisboa. Neles fazia o ponto da situação e dava conta das diligências efectuadas junto do poder local no sentido de aliviar a escrava vida dos cules. Embora esta faceta do romancista tenha sido abordada em muitas das análises da sua vida e obra, pouco se sabe de concreto. Algumas benesses terá conseguido, pois a determinada altura o português é agraciado com uma bengala com castão de oiro, um gesto de gratidão da comunidade chinesa para a qual ele assegurara, como o próprio escreveu, “mais pão e menos chicote”. Precisamente na altura em que Eça deixava Cuba e, talvez como resultado dos relatórios enviados, as autoridades portuguesas acabariam por proibir a sangria de emigrantes chineses para as Antilhas a partir do porto de Macau.
Joaquim Magalhães de Castro
em Havana