Religiões e Médicos contra a Eutanásia

Eutanásia torna as sociedades “desesperadas”.

Tem-se debatido de forma intensa e apaixonada a despenalização da eutanásia. Oito comunidades religiosas uniram-se para rejeitar a eutanásia e o mesmo aconteceu com os últimos seis bastonários da Ordem dos Médicos. A Família Cristã dá-lhe conta do que tem acontecido em países em que é legal e dos movimentos na sociedade portuguesa.

«A legalização da eutanásia não é moralmente neutra, porque envia uma mensagem terrível: em certas circunstâncias, o homicídio premeditado é legítimo e até é bom». A afirmação é do filósofo belga Michel Ghins, que esteve recentemente em Portugal para explicar o que tem acontecido neste país, onde desde 2002 a eutanásia é legal. O professor emérito de Filosofia da Universidade Católica de Lovaina e membro da Academia Internacional de Filosofia e Ciência explica as palavras duras: «A eutanásia é o homicídio em que se mata uma pessoa, é intencional porque o médico tem a intenção de pôr fim à vida da pessoa e é premeditado porque há um prazo entre o pedido do paciente e o acto da eutanásia».

Na Europa, a eutanásia está despenalizada, em algumas circunstâncias, na Holanda e na Bélgica, e o suicídio assistido é permitido na Suíça.

Michel Ghins afirma que a eutanásia é cada vez mais praticada na Bélgica. São os médicos quem reporta todos os casos de eutanásia em que intervêm, e por isso Ghins considera que os dados oficiais são inferiores aos reais. Além disso, cada vez há mais eutanásias fora da lei. «Alguns casos de suicídio assistido foram validados, casos de pessoas que sofrem por antecipação de doença de Alzheimer, mas ainda em estádio inicial, ou de cancro em estádio inicial em pessoas idosas», explica. Em outras situações, ela não foi pedida pelo doente. «Há casos, na Bélgica, de eutanásia involuntária. Uma pesquisa da Universidade Livre de Bruxelas, que não é católica, revela que cerca de mil eutanásias involuntárias têm sido praticadas». Mas se são ilegais, a justiça actua? Michel Ghins explica que «seria ingénuo pensar que o médico que praticou uma eutanásia ilegal a iria declarar». Em treze mil eutanásias declaradas pelos médicos, nestes catorze anos, apenas foi levado à justiça um caso. Porquê? «Para que uma declaração de eutanásia seja transmitida à justiça é preciso uma maioria de 2/3. E a comissão de controlo da eutanásia é composta maioritariamente por pessoas que defendem um alargamento das condições de eutanásia», revela. Por isso, casos de depressão profunda ou de idosos têm sido aceites. E até, recentemente, o caso de uma mulher que foi alvo de eutanásia sem a ter pedido, nem ter sido ouvido o médico independente.

A sociedade belga mudou. O filósofo diz que «legalizar tem um impacto na mentalidade das pessoas: passa a ser uma solução mais aceitável». Em 2014, foi alargada a menores de idade. Tem aumentado a pressão social e política para alargar as condições de acesso a «pessoas dementes e inconscientes» e para «incluir a eutanásia como um acto médico e como cuidado paliativo».

O mesmo tem acontecido na Holanda, como explica Theo A. Boer, professor de Ética. «A eutanásia contribui para um clima social em que a eutanásia se torna uma boa solução para qualquer forma de sofrimento terrível. Os números de suicídios também aumentaram nesse mesmo período. A eutanásia pode ajudar em casos individuais, mas vai pôr a sociedade como um todo no caminho de estar cada vez mais e mais desesperada».

Na Holanda, os cuidados paliativos estão bem desenvolvidos, já na Bélgica não, diz Michel Ghins. O belga rejeita que a eutanásia ajude a morrer com dignidade. «O problema é mais viver com dignidade até ao fim. Quando uma pessoa pede a eutanásia, antes de mais nada, ela quer deixar de sofrer ou deixar de ser um peso para a sociedade ou para os familiares. A questão essencial é fazer com que o fim de vida seja condizente com a dignidade intrínseca da pessoa. Tem de ser tratada, ter acesso a cuidados paliativos, acompanhamento familiar, social, espiritual se assim desejar. A vida digna é providenciada por cuidados paliativos de qualidade».

Theo A. Boer estudou Teologia e Ética e investiga as decisões de fim de vida, novos métodos de diagnóstico e a ética da guerra e da paz. Por ser cristão, poder-se-ia pensar que é contra a eutanásia. Nada de mais errado. A Igreja Protestante apoiou a legalização na Holanda. «Vejo a eutanásia como um último recurso. Imagina que estás no deserto e não está ninguém à volta. Um camião bate numa parede de betão. Não se consegue tirar o motorista e o camião começa a arder. Não tens rede para ligar para os serviços de emergência. Ele pede que o mates antes de morrer queimado pelas chamas. Eu talvez o matasse. E se eu tivesse duas pistolas: uma com balas e outra com sedativos?». Por ser a favor, mas com reservas, foi convidado para participar nos Comités Regionais de Revisão da Eutanásia, que analisam os casos reportados pelos médicos, entre 2005 e 2014. Pessoalmente foi responsável por mais de quatro mil casos revistos. A sua experiência levou-o a passar de defensor da eutanásia a crítico.

Nos anos 90, por pressão dos médicos que já a praticavam ilegalmente, a eutanásia foi despenalizada. «Os nossos critérios são escassos e vagos, mas nós pensávamos que eles seriam restritivos. Primeiro: tem de haver um pedido bem avaliado e voluntário. Mas quão bem considerado pode ser o pedido quando a pessoa está com demência ou dores extremas!? O segundo critério é que haja sofrimento insuportável. Quem é que estabelece que o sofrimento é insuportável? Em última análise, é o doente. Terceiro: não pode haver nenhuma perspectiva de melhoria. O que quer dizer que não há opções aceitáveis para o doente, que aliviem o seu sofrimento ou curem a sua doença. E outro critério é que um segundo médico independente tem de ser consultado», explica. Mas, durante muito tempo, outros critérios foram usados, embora não estivessem explícitos na lei: «Não incluímos que tivesse de se ser doente terminal, que devia haver uma relação médico-doente antes da eutanásia e não incluímos que o doente tenha de estar consciente no momento da eutanásia». Theo A. Boer explica que estes «critérios-sombra» «no início eram usados nos comités». Mas isso mudou na década de 2010, quando se decidiu que não podiam ser usados por não estarem na lei. Este professor de Ética admite que a mensagem mudou e passou a ser outra: «“Vocês estão a ser muito restritivos, porque a lei permite-o”. Foi aí que eu comecei a sair da minha zona de conforto». Os números de pessoas “eutanasiadas” começaram a subir. «Em 2015, pensámos que tínhamos chegado ao topo. Mas continuou a aumentar. Em 2015, vinte por cento dos casos não foram reportados. Isto significa que os números da eutanásia continuarão a aumentar e não sabemos onde acabarão», defende Boer. Ele desmonta um argumento usado a favor da eutanásia: «Se alguma vez falarem com alguém pró-eutanásia, essa pessoa dirá que as taxas de mortalidade nos Países Baixos também subiram. Sim, subiram, mas não em trezentos por cento! Em nove por cento, nesse mesmo período».

A eutanásia estendeu-se a doenças que não são terminais. Em 2016, os casos relacionados com essas era igual ao total de 2002. «Os casos mais interessantes são os de psiquiatria e demência, porque representam pessoas que poderiam ter vivido por muitos anos: psiquiatria passou de dois casos em 2002 para 63 no ano passado. E demência passou de um caso em 2002 para 169 em 2017».

Em Portugal, a oposição à eutanásia une os últimos seis bastonários da Ordem dos Médicos vivos. Eles subscreveram um manifesto recusando a morte assistida e querem dar conta das suas razões ao Presidente da República. Em declarações à Família Cristã, Germano de Sousa explica que «os médicos não podem, de maneira nenhuma, aceitar a eutanásia. Nunca podíamos e mais ainda quando somos os principais autores». O antigo bastonário explica que a eutanásia tem sempre em conta uma acção do médico, que é contrária ao Juramento de Hipócrates e ao Código Deontológico dos Médicos. «Vamos ser clarinhos: eutanásia e matar outrem. Mesmo que os intuitos sejam piedosos, eutanásia é matar outrem», defende. Germano de Sousa, ateu assumido, explica que «os médicos consideram a vida inviolável e sagrada, não no sentido religioso, mas social». Assinaram este manifesto os antigos bastonários Germano de Sousa, Gentil Martins, Carlos Ribeiro, Pedro Nunes, José Manuel Silva e o actual bastonário Miguel Guimarães. Germano de Sousa acredita que representam noventa por cento dos médicos. Este antigo bastonário critica os partidos políticos que propõem a legalização da eutanásia. «Nos programas eleitorais, ninguém sabia que estes senhores deputados iam propor esta lei. Não é propor taxar baldes de plástico! É propor matar alguém!» Germano de Sousa deixa-lhes um desafio: «Eu gostava de ver os senhores deputados a usar este esforço, em vez de na eutanásia, a esforçar-se por termos cuidados paliativos nacionais e que cheguem a toda a população». O médico alerta ainda para algumas especificidades dos projectos de lei. «Falam em doença incurável, mas não dizem que tem de ser terminal. Uma pessoa que tenha doença renal tem doença incurável. Também diz que se tem de ter sofrimento. O que é o sofrimento? A artrite reumatoide dá dores terríveis…».

Também oito comunidades religiosas se juntaram para rejeitar a eutanásia. «Acreditamos que a vida humana é inviolável até à morte natural e perfilhamos um modelo compassivo de sociedade e, por estas razões, em nome da Humanidade e do futuro da comunidade humana, causa da religião, sentimo-nos chamados a intervir no presente debate sobre a morte assistida, manifestando a nossa oposição à sua legalização em qualquer das suas formas, seja o suicídio assistido, seja a eutanásia», pode ler-se na declaração assinada em Maio. Subscrevem o texto a Aliança Evangélica Portuguesa, a Comunidade Hindu Portuguesa, a Comunidade Islâmica de Lisboa, a Comunidade Israelita de Lisboa, a Igreja Católica, o Patriarcado Ecuménico de Constantinopla, a União Budista Portuguesa e a União Portuguesa dos Adventistas do Sétimo Dia. O documento foi elaborado através do Grupo de Trabalho Inter-religioso Religiões-Saúde. O texto, que seguiu para os presidentes da Assembleia da República e da Presidência da República, esclarece que «o que nos é pedido não é que desistamos daqueles que vivem o período terminal da vida, oferecendo-lhes a possibilidade legal da opção pela morte, à qual pode conduzir a experiência do sofrimento sem cuidados adequados». O desafio nestes casos é «que nos comprometamos mais profundamente com os que vivem esta etapa, assumindo a exigência de lhes oferecer a possibilidade de uma morte humanamente acompanhada». Daí que estas oito confissões religiosas salientem o papel essencial dos cuidados paliativos e apelem ao investimento neles.

No grupo de trabalho há mais comunidades religiosas que não subscreveram o documento. A Comunidade Bahá’í e o COPIC, Conselho Português de Igrejas Cristãs que junta metodistas, presbiterianos e lusitanos, não concordaram. Num comunicado, o COPIC justificou a decisão alegando que não querem «traçar os limites daquilo que é socialmente lícito ou ilícito, preferindo afirmar as nossas convicções em diálogo e no respeito pela laicidade do Estado».

Mesmo assim, foi a primeira vez que as principais religiões se uniram em torno de um texto comum. D. Manuel Clemente congratulou-se porque «nos encontrámos no essencial. A religião é uma ligação ao absoluto e temáticas como a da vida unem-nos». O cardeal-patriarca de Lisboa defendeu que «quando a vida dói e é particularmente sofrida, pelos próprios, pelos seus familiares, pelos amigos, por todo o sistema hospitalar e de saúde, tem de ser devidamente acompanhada tecnicamente, pelos cuidados paliativos, e com a possibilidade para que as pessoas realmente o possam fazer, o que tem que ver com a disponibilidade física e até laboral. Se fizermos tudo isto e se nos tornarmos numa sociedade globalmente paliativa, que acompanha, que cuida, a vida quer viver». O cardeal-patriarca de Lisboa defendeu que «os cuidados paliativos não chegam nem em quantidade nem em qualidade a todos os que deles precisam» e que o seu desenvolvimento é essencial. Pediu também que finalmente se regulamente a possibilidade de os doentes poderem ser acompanhados na fase final da vida. «Como já há licenças para acompanhar a maternidade e a paternidade, também deve haver para acompanhar pessoas que estão doentes e que precisam de ajuda e proximidade», defendeu.

Theo A. Boer deixa um apelo: «Não vão por aí. Não sigam a lei holandesa. As decisões que vão tomar agora vão influenciar a forma como os vossos filhos e netos vão morrer daqui a trinta ou quarenta anos».

CLÁUDIA SEBASTIÃO 

Família Cristã

N.d.R. – No passado dia 29 de Maio de 2018 a Assembleia da República Portuguesa chumbou os projectos de lei com vista à despenalização da eutanásia, apresentados pelo Partido Socialista, Bloco de Esquerda, PAN e Verdes.

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