Os Escravos dos Tempos Modernos
Com a realização do Campeonato do Mundo de Futebol no Brasil os problemas sociais naquele país passaram a adquirir outra visibilidade, com destaque negativo para a questão do tráfico de seres humanos. Infelizmente, o problema não é apenas brasileiro e estende-se pelos cinco continentes, numa teia de violência e exploração que atinge os mais fragilizados, particularmente as mulheres. As ONG internacionais acreditam que mais de 200 milhões de pessoas são vítimas de tráfico, sendo este o terceiro negócio mais lucrativo, a seguir à venda de droga e de armas. O CLARIM reproduz um artigo publicado na revista Família Cristã sobre a situação em Portugal, uma gota num oceano de tristeza, também há pouco tempo revelada.
A polícia teve de saltar o muro para socorrer a Maria (nome fictício). Estava presa em casa há mais de um ano quando os agentes da Guarda Nacional Republicana a foram salvar das mãos de um senhor mais velho que a tinha “mandado” ir da Guiné-Bissau com a promessa de poder continuar os estudos que tinha iniciado no seu país. Iludida com esta promessa, Maria aceitou casar com o homem em questão, já que este Ihe disse que só assim poderia entrar em Portugal e lá ficar a residir legalmente.
Quando chegou ao destino, foi fechada numa casa isolada, rodeada por muros altos, e obrigada a ter relações sexuais não consentidas com ele durante todo o tempo que esteve lá em casa. Sob ameaça de violência física, que era cumprida repetidamente, quer ela colaborasse, quer não colaborasse, Maria nunca teve coragem de tentar fugir, pois receava ser presa pelas autoridades, já que era esse medo que Ihe tinha sido incutido no pensamento pelo homem que a mantinha cativa. Era obrigada a cozinhar para ele, a fazer as lides da casa, tudo sem receber qualquer remuneração, e ainda tinha de manter todas as relações conjugais que ele exigia.
Esta história trágica, que está em julgamento, é igual a tantas outras. Poderíamos pensar que o fenómeno do tráfico de seres humanos era uma realidade apenas nos países em vias de desenvolvimento, mas tal não é verdade. Cláudia Pedra, investigadora do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais (IEEI), baseia-se no estudo “A Protecção dos Direitos Humanos e as Vítimas de Tráfico de Pessoas”, apresentado em Outubro de 2012, que denunciava a existência de 250 a 270 vítimas de tráfico em Portugal. Segundo a investigadora, os números são quase «três vezes superiores aos que o Governo anuncia». Portugal é destino de chegada e trânsito para a maioria das vítimas, embora 9% das vítimas identificadas por este estudo sejam portuguesas.
Existe sempre uma fragilidade por detrás de cada vítima de tráfico. Seja financeira ou familiar, a viagem para outro país e a entrada nas redes de tráfico não sucede hoje em dia de forma coerciva, antes surge como a única saída de quem deixou o seu país de origem com promessas vãs que nunca se chegam a concretizar no país de chegada. São essencialmente mulheres as vítimas de tráfico, utilizadas para exploração sexual, laboral (por vezes ambas) e servidão doméstica, embora no campo da exploração laboral os homens também sirvam para serem traficados, nomeadamente para zonas da Europa de trabalho agrícola.
As vítimas vêm de várias partes do mundo. O estudo apresentado fala de proveniências da Nigéria, Brasil, Tailândia, Gana, mas também Roménia e até Espanha, com o tráfico transfronteiriço a servir essencialmente para exploração laboral.
Ninguém sabe bem a verdade sobre esta realidade, para sermos justos. É um mundo sombrio, onde quem está não fala e quem não está desconhece por completo. São círculos fechados, que inspiram tanto medo em quem é atingido por eles, que poucos são os que têm coragem de se chegar à frente. Cláudia Pedra conta a história de uma mulher que durante anos viveu aprisionada num bordel em Espanha. Obrigada a prostituir-se, passaram anos até que conseguisse fugir daquele sítio e ir para Portugal. Encontraram-na e ela contou-lhes a sua história e até ajudou a identificar outros casos, mas quando voltaram lá para falar com ela, tinha já desaparecido para lugar desconhecido.
Uma vida a olhar por cima do ombro, de insegurança, é precisamente o que as organizações de apoio às vítimas de tráfico procuram impedir. Há instituições do Estado e outras particulares, de âmbito religioso ou não, que prestam este serviço. Falámos com uma religiosa que apoia vítimas de tráfico, que nos falou de vida em sobressalto, com fugas nocturnas para Espanha, ou tempos demorados em tribunal, procurando criar condições para que estas mulheres e homens possam retomar uma vida normal, sem medo de voltarem a ser capturados. Para alguns é suficiente voltarem a casa, se tiverem uma estrutura familiar para os receber, mas para muitos foi essa mesma estrutura familiar que os colocou na rede de tráfico, pelo que regressar a casa não é uma opção. «Chegam às nossas mãos, muitas vezes por indicação de outras pessoas, mulheres completamente destroçadas e fragilizadas, vítimas de violência física e psicológica», conta-nos esta religiosa, que prefere manter o anonimato para não ligarem os testemunhos aos casos em que está a trabalhar.
Mas o seu trabalho não é fácil. «O Estado tem uma casa de protecção para vítimas, e obriga as instituições que assinalam vítimas de tráfico a enviá-las para lá. Mas muitas não querem ir, porque se sentem seguras na instituição que as acolheu, e isto torna o processo muito complicado», desabafa. Também o estudo apresentado é crítico em relação ao Estado. Nas conclusões pode ler-se que 53% das vítimas identificadas não receberam qualquer apoio e que, das que receberam, 74% foi dado por ONG, 14% pelo Estado e 12% por instituições religiosas. Para além disso, o estudo refere que há uma «insuficiência do sistema de protecção e apoio às vítimas» em termos «qualitativos» e «quantitativos».
O panorama do tráfico no resto do mundo é assustador. «As ONG internacionais acreditam que mais de 200 milhões de pessoas são vítimas de tráfico», refere Cláudia Pedra, o que torna este número superior ao da própria escravatura, quando era legal em todo o mundo. É, por isso, um negócio lucrativo, «o terceiro, a seguir ao negócio da droga e da venda de armas», explica a investigadora do IEEI.
Acabar com este flagelo é uma necessidade, que passa não só por resgatar as vítimas, mas também por terminar com as redes. Só em Portugal foram detectadas no estudo 36 redes de tráfico, números que, à semelhança do das vítimas, serão sempre superiores ao que se consegue descobrir, asseguram-nos os especialistas nesta área.
Por isso, é preciso combater este flagelo. Antes de mais, certificando que não se contratam pessoas que estejam nesta situação, e depois tendo atenção aos indicadores que existem e que permitem descortinar se estaremos perante uma situação de tráfico. Esta é uma luta de todos, de David contra Golias, que só verá o seu fim no dia em que os homens compreenderem que as pessoas não são mercadorias ou bens que se possam transaccionar ou tomar posse.
RICARDO PERNA