Um rosto no meio da multidão
Os comunicadores desempenham um papel público de grande responsabilidade. Um título de jornal pode fazer muito mal, pode matar. Também a ausência de um título pode produzir o mesmo feito.
Esta minha reflexão baseia-se em dois episódios, um destes dias, o outro de há uns meses. O primeiro é o encontro casual com um velho amigo, um ex-gerente de alto nível que, devido a uma investigação da magistratura, divulgada por todos os jornais nacionais, forçadamente perdeu o seu emprego, com todas as consequências que isso implica. No fim, o inquérito não deu em nada, mas esta segunda notícia não foi divulgada com a mesma ênfase que a primeira, relativa ao início das suas investigações. Ooutro episódio é que em 21 de Dezembro de 2018 teve início a minha aventura como director deste prestigioso diário [L’Osservatore Romano]. É fácil ligar os dois episódios e compreender sobre o que estou a reflectir: a responsabilidade, a enorme responsabilidade que pesa sobre os ombros dos jornalistas e, mais genericamente, dos agentes no campo das comunicações.
Não é um tema sobre o qual fala muito, talvez porque o chamado “debate público” é muitas vezes delineado precisamente por jornalistas que insistem, com razão, sobre as responsabilidades das outras categorias da sociedade, especialmente dos políticos, mas não gostam de colocar as próprias responsabilidades no centro das atenções.
Durante dezoito anos ensinei na escola e também ali ouvi muitas vezes os meus colegas professores falarem, as vezes com veemência, sobre a liberdade do professor como princípio fundamental da escola, um direito a defender a todo o custo, contra qualquer possível “atentado”. Ao contrário, ouvia muito raramente (ou melhor: nunca) os meus colegas falarem do outro princípio que, na minha opinião, juntamente com a liberdade, sustenta todo o edifício da educação: o princípio da responsabilidade. Os educadores, como os comunicadores, desempenham um papel público que requer uma grande responsabilidade, não só porque tem a ver com a construção da casa comum, com a sociedade do futuro, mas também porque incidem directamente na vida concreta, na carne e no sangue de pessoas humanas. Um título de jornal pode fazer muito mal, pode matar. Também a ausência de um título pode produzir o mesmo efeito, pensemos na ausência (ou na presença risível) das chamadas “negações”: diante das notícias bradadas com um título de quatro colunas na primeira página, o lugar para onde se “arremessa o monstro”, muitas vezes correspondem notícias de negação sussurradas nos cantos mais recônditos do jornal.
Neste ponto, achei sempre iluminadora a reflexão que Bento XVI fez na suameditação diante da imagem de Nossa Senhora no dia 8 de Dezembro de 2009 na praça de Espanha: «Na cidade vivem – ou sobrevivem – pessoas invisíveis, que de vez em quando aparecem na primeira página ou na televisão e são exploradas até ao fundo, enquanto a notícia e a imagem chamarem a atenção. Trata-se de um mecanismo perverso, ao qual infelizmente é difícil resistir. A cidade primeiro esconde e depois expõe ao público. Sem piedade, ou com uma piedade falsa. No entanto, em cada homem existe o desejo de ser acolhido como pessoa e considerado uma realidade sagrada, porque cada história humana é sagrada, e exige o maior respeito[…]Os “mass media” tendem a fazer com que nos sintamos sempre “espectadores”, como se o mal se referisse somente aos outros, e como se certas coisas nunca nos pudessem acontecer. Contudo, somos sempre “actores” e, tanto no mal como no bem, o nosso comportamento tem influência sobre os outros […]A cidade é feita de rostos, mas infelizmente as dinâmicas colectivas podem fazer-nos perder a percepção da sua profundidade. Vemos tudo superficialmente. As pessoas tornam-se corpos, e estes corpos perdem a alma, tornam-se coisas, objectos sem rosto, intercambiáveis e consumíveis. Maria Imaculada ajuda-nos a redescobrir e a defender a profundidade das pessoas, porque nela existe a transparência perfeita da alma no corpo […]Nossa Senhora ensina-nos a abrir-nos à acção de Deus, a fim de olharmos para os outros como Ele faz: a partir do coração. E a olharmos para eles com misericórdia com amor, com ternura infinita, especialmente para aqueles mais sozinhos, desprezados, explorados […]Quero prestar homenagem pública a todos aqueles que, em silencio, não com palavras mas com acções, se esforçam por praticar esta lei evangélica do amor, que faz progredir o mundo. São numerosos, também aqui em Roma, e raramente são notícia. Homens e mulheres de todas as idades, os quais compreenderam que não é preciso condenar, queixar-se, recriminar, mas é mais válido responder ao mal com o bem. Isto muda as coisas; ou melhor, muda as pessoas e, por conseguinte, melhora a sociedade».
A cidade é feita de rostos, eis o ponto. Quando Jesus caminhava pelas cidades do seu tempo, levando a sua boa nova, ia sempre ao encontro das pessoas, procurando fitá-las no rosto (pensemos no episódio da hemorroíssa), no meio da multidão procurava criar uma relação autêntica, humana, pessoal; às vezes a mídia obtém o resultado oposto: tiram um rosto da multidão, mas para o explorar “até ao fundo, enquanto a notícia e a imagem chamarem a atenção”, para o expor à multidão.
Esta é a reflexão que venho elaborando, agora que me encontro a dirigir um jornal, ou seja, a oferecer à atenção dos leitores o meu olhar sobre o mundo, consciente do “poder” que exerço a partir da minha função de director, e pergunto-me: qual é o meu olhar? É de quem está à procura de notícias, ou de rostos que não sejam apenas corpos a explorar? Com que estilo interpreto e realizo o meu trabalho, reivindicando apenas os meus direitos e defendendo com unhas e dentes a minha liberdade? Ou procuro ter o olhar daqueles que, sentindo o peso da responsabilidade e conhecendo a fragilidade humana, fitam o mundo e os outros com um olhar de verdade e de misericórdia? O meu olhar é como o de Maria que fita o seu Filho, ou seja, a partir do coração, ou limita-se à superfície e, em vez de servir os outros, acaba por se servir deles?
Gostaria que esta pergunta, que é muito laica, porque toca o nervo crucial da construção democrática das nossas sociedades, fosse acolhida pelos meus colegas para que todos juntos pudéssemos falar concretamente, de uma vez por todas, não só sobre o sacrossanto direito da liberdade de comunicação, mas também sobre a outra face da mesma moeda.
Andrea Monda
Director do L’Osservatore Romano