Os Mártires do Uganda
Tudo aconteceu em 1886. No dia 3 de Junho, no Uganda, em África. A Sociedade dos Missionários da África, mais conhecido por Padres Brancos, uma sociedade de vida apostólica fundada em 1868, por D. Charles Lavigerie, arcebispo de Argel, despontava por muitos territórios africanos no seu afã missionário. Em 1878, chegavam ao Buganda, um reino independente a norte do Lago Vitória, no centro da África. Aquele reino tornar-se-ia depois uma das quatro províncias do protectorado inglês do Uganda, em 1894. Até lá, foi uma monarquia hereditária de tipo africano, com o soberano a ter direito de vida e morte sobre os seus súbditos, entre outras características. Mas ao contrário de outras monarquias africanas, Buganda tinha um Governo organizado, o que surpreendeu os europeus. O palácio real era a sede e base da oligarquia, elite, que governava o reino. Receberam bem, na pessoa do rei Mutesa I os primeiros Padres Brancos, como receberam missionários protestantes um pouco antes e também dignitários muçulmanos.
Os Padres Brancos foram-se implantando, abriram um orfanato a partir do qual a missão funcionava, mas com dificuldades: pouco apoio popular e órfãos que não se deixavam ajudar. Em 1882 os missionários abandonaram o reino, tamanhas eram as dificuldades, mas deixaram alguns convertidos, que começaram a fazer apostolado de forma autónoma.
Mas tudo piorou com a morte de Mutesa I em 1884, pois sucedeu-lhe o seu filho Muanga II, de 18 anos. Irreverente e de pouco senso, era também acusado de práticas homossexuais arbitrárias e excessivas, públicas, usando para os seus fins os criados do palácio. Apesar desta conduta, Mwanga apelou ao retorno dos missionários, que conhecera na infância. Regressaram então os Padres Brancos, encontrando duzentos conversos entre os servos do palácio real, os “rezadores”, como eram apelidados pelo povo. Mas a vida dos cristãos foi piorando, dadas as recusas em participar nos festins sexuais do jovem rei. Entre eles estava o mordomo do palácio, José Mukasa, com 25 anos, líder dos “rezadores”. Este chegou a acusar o rei de criminoso, por ter assassinado impunemente um missionário protestante e alguns dos seus convertidos. Mwanga reagiu com violência e condenou José à morte. Este, antes do suplício, terá dito: «Um cristão que entrega a sua vida a Deus, não tem medo de morrer», perdoando ao rei. Morreria decapitado logo nesse dia, a 15 de Novembro de 1885. Carlos Lwanga, funcionário da corte, substituiria José, educando e instruindo os cristãos, convertendo e tentando defender os criados da luxúria e perseguições do jovem monarca, que era religiosamente mais afecto ao Islão, embora sem uma prática correcta. Conseguiu mesmo abrandar o rei, até Maio de 1886.
Sim, porque naqueles tempos o rei chamou à sua presença Mwafu, um dos seus pajens. «– Porque estás aqui diante de mim?», perguntou-lhe o rei. Mwafu respondeu que tinha estado na catequese de Daniel Sebuggwawo, um “rezador”. Irado, o rei mandou chamar Daniel e logo o matou. Mandou selar o palácio e chamou os carrascos, para executarem os cristãos. Carlos Lwanga, percebendo o objectivo daquela ordem, logo baptizou quatro catecúmenos pela noite, entre eles Kizito, de apenas 13 anos. De manhã, Mwanga convocou a corte e separou os cristãos, os que “rezam”, dos outros cortesãos. Entre os cristãos, estavam 15 crianças e jovens, menores de 25 anos, a quem Mwanga perguntou se queriam continuar na sua fé. Sim! Responderam em coro e com força. Logo ali foram condenados à morte e obrigado a ir a pé, para morrer, até Namugongo, uma caminha da de mais de 40 quilómetros (dista 70 quilómetros da capital do Uganda, Kampala). Carlos Lwanga enquadrou sempre o grupo, desde o palácio, em orações mas também em liderança e apoio espiritual. Três dos condenados foram martirizados no caminho, os restantes no destino. Santiago Buzabaliawo, soldado, André Kagwa, chefe tribal e família, Matias Murumba (ou Kalemba), são alguns dos que estão na caminhada da morte. Os que chegaram a Namugongo, foram encarcerados durante sete dias e imolados no fogo. Um dos primeiros foi Mbaga Tuzinde, de 17 anos, filho do chefe dos verdugos, que foi morto às ordens do pai, pois manteve a sua fé.
Mas o primeiro mesmo, segundo os testemunhos, foi Carlos Lwanga, exemplo de liderança já antevista pelo rei, que por isso, para tentar dissuadir os restantes, mandou que fosse queimado antes de todos os demais. Se Carlos foi logo morto, logo também os demais o quiseram seguir, contrariando os intentos do rei. Foram mortos todos, brutalmente torturados, muitos queimados vivos. Católicos e anglicanos, refira-se. Carlos Lwanga tinha apenas 21 anos, foi queimado vivo, lentamente. Dos seus 21 companheiros, recorda-se Kalemba Murumba, que foi abandonado numa colina com as mãos e os pés amputados, morrendo de hemorragia, ou André Kagua que foi decapitado, assim todos até ao último, João Maria. Um dos mártires, Mukasa Kiriwanu ainda nem tinha sido baptizado, tendo-o sido não com água benta mas com o seu próprio sangue.
São Carlos Lwanga e os mártires ugandeses foram beatificados por Bento XV em 6 de Junho de 1920 e canonizados por Paulo VI no dia 18 de Outubro de 1964, na presença dos padres do Concílio Vaticano II. O próprio Paulo VI consagrou em 1969 o altar do grandioso santuário que surgiu em Namugongo, onde os cristãos guiados por Carlos Lwanga quiseram rezar até à morte, ali no local do seu suplício. De recordar que o exemplo de Carlos e dos seus 21 companheiros faz jus com o adágio popular “Sangue dos Mártires, semente de cristãos”: depois dos trágicos acontecimentos daquele dia, os Padres Brancos e outros missionários, católicos e anglicanos, foram expulsos do reino. Mas no seu regresso, mais tarde, encontraram uma cristandade com 500 cristãos e mais de mil catecúmenos, que persistiram na fé, mesmo depois daquele dia fatídico. Ou glorioso, pleno de exemplo, na figura do grande santo que foi Carlos Lwanga, padroeiro dos jovens de África, e dos Mártires do Uganda, que terão sido mais de 22.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa