Santa Ana e São Joaquim

Os Pais de Maria

Na próxima terça-feira, 26 de Julho, celebramos a Memória dos Pais da Virgem Maria e avós maternos de Jesus, os Santos Ana e Joaquim. Conhecemos os seus nomes porque a tradição os preservou, porque a memória dos cristãos assim o permitiu ao longo de quase vinte séculos. Não conhecemos a genealogia materna de Jesus tão bem como a paterna, que Mateus (1,1) e Lucas (3,23) fixaram nos seus Evangelhos. Mas santos como Epifânio e João Damasceno, a iconografia antiga, e depois Jacopo de Voragine e Vicente de Beauvais na Idade Média, a par da devoção e apreço dos fiéis, ajudaram a sua memória a definir-se e manter-se até hoje.

O culto à Santa Parentela da Virgem Maria é antigo, como se viu, mas um mais antigo que outro. De facto, o culto de Ana nasceu nas cristandades do Médio Oriente no séc. VI, chegando ao Ocidente no séc. X, ao passo que o culto do seu esposo, Joaquim, é mais recente. Pelos seus frutos os conhecereis, profetizou São João Damasceno. Mas com efeito, tudo o que se conhece de ambos, mesmo os seus nomes, deriva da literatura apócrifa. Em concreto, provém dos Evangelhos da Natividade de Maria, do Apócrifo de (Pseudo-)Mateus e do Proto-Evangelho de Tiago. Este último é o mais antigo destes textos, datando de c. 150. Trata-se de um texto que gozou de grande autoridade no Oriente, com excertos a serem lidos já nas festas em honra de Maria nos primeiros séculos do Cristianismo. Os Padres da Igreja do Ocidente refutaram-no, todavia, mas o seu conhecimento não morreu. A Legenda Dourada, de Voragine (séc. XIII), incorporará mesmo algumas partes desse texto, no que é um dos seus contributos para manter viva a memória, através da inspiração que servira à iconografia cristã à posteriori.

A propagação do culto a Santa Ana, por via da iconografia e da lenda, conheceu naquele repertório hagiográfico um forte incremento. Tornou-se até uma das santas mais populares da Igreja Romana. Apesar da não incorporação dos apócrifos no cânone bíblico, e logo a sua secundarização, não deixam no entanto esses textos de encerrarem dados históricos comprováveis, ainda que perdidos numa vastidão de textos de facto pouco fiáveis ou sem rigor e exactidão. Mas na sua historicidade encontramos por exemplo referentes seguros acerca de figuras do Cristianismo, como os Pais da Virgem Maria.

 

Ana e Joaquim

O nome Ana provém do Hebraico “Hannah”, que significa “graça”, tendo Joaquim a mesma origem, embora significando “Javé prepara”. Em Nazaré viviam Joaquim e Ana, um casal rico, piedoso, já com uma idade avançada mas sem descendência. Assim nos narra o Proto-Evangelho, que também nos recorda que essa esterilidade lhes causava dissabores. Assim sucedeu, por exemplo, quando um dia Joaquim se apresentou no Templo para oferecer um sacrifício e foi impedido por um certo Rúben, tudo porque aos varões sem descendência era considerado indigno aceder ao espaço sagrado. Joaquim, triste, não regressou a casa e foi para os montes, apresentar-se sozinho a Deus, em penoso sofrimento.

Ana, conhecendo a razão da ausência do esposo, rogou então ao Senhor a pedir-Lhe que acabasse com a maldição da esterilidade, prometendo a sua descendência para o Seu serviço. Um anjo apareceu a Ana e anunciou-lhe que Deus lhe concedera o dom da maternidade, cujo fruto seria bendito por toda a humanidade. O mesmo sucedeu a Joaquim, que então regressou para junto de Ana. Esta daria depois à luz Miriam, ou Maria (“cheia de luz”).

Mudaram-se os Pais de Maria depois para Jerusalém, segundo uma tradição antiga, onde alguns até advogam que terá sido o local de nascimento da Virgem. Ali se criou pelo menos, ali morreriam Joaquim e Ana. Num lugar onde Santa Helena, mãe do imperador Constantino, construiria uma igreja no séc. IV, venerando-se ali o sepulcro dos Pais da Virgem. Até fins do séc. IX, quando os muçulmanos profanaram o lugar e ali criaram uma escola. Os túmulos e a cripta onde se situavam seriam descobertos pela arqueologia em 1889.

 

Veneração e devoção

Como já dissemos, Santa Ana tem culto mais antigo que São Joaquim, remontando ao séc. IV no Oriente. O grande imperador bizantino Justiniano I, que viveu até c. 565, erigiu mesmo uma igreja dedicada a Santa Ana. Os mais antigos textos litúrgicos da igreja ortodoxa grega (Calendário de Constantinopla) atestam também, a partir do séc. VIII, o culto a Santa Ana. No Ocidente só muito mais tarde o culto irradiaria, embora na Provença, Sudeste de França, Santa Ana tivesse, por volta do ano mil, já focos de culto. Em Roma descobriu-se na Idade Média uma imagem da santa, uma pintura bizantina do séc. VIII, o que pode referenciar um culto ocidental anterior ao século XIII, tempos da Legenda Dourada. É curioso notar que já nessa época a festa era a 26 de Julho.

O primeiro decreto papal com referência a Santa Ana data de 1382, da lavra do Papa Urbano VI, a autorizar a festa da santa em Inglaterra, a súplica de muitos devotos daquele reino. Aproveitou-se também o ensejo papal para se efectivar uma boda real, o casamento entre Ricardo II e Ana da Boémia. Em 1584 a festa foi estendida a todo o Ocidente. Relíquias as houve também, que passaram da Terra Santa para Constantinopla em 710, onde ficaram até 1333, daqui transitando para a França (na igreja de Apt) e depois Mainz, Alemanha, perdendo-se o rasto depois e até a autenticidade, segundo alguns peritos da Igreja.

São Joaquim conhecera por seu turno um culto mais tardio no Ocidente. Mas os gregos já o veneravam antes. No Ocidente a sua festa teve várias datas comemorativas, chegando até a ser suprimida, mas sempre restaurada por força dos fiéis e o culto a Santa Ana. A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II colocou-o no mesmo dia que Santa Ana, assim ficando definida a festa destes padroeiros dos Avós. Santa Ana é também a padroeira das mulheres trabalhadoras, representando-se muitas vezes com a Virgem Maria no seu regaço, às vezes também esta com o Menino Jesus nos braços (“Santas Mães”). Patrocina ainda os mineiros, que consideram Cristo o ouro e Maria a prata.

Segundo a tradição cristã Joaquim morreu com c. 80 anos, sendo a Virgem Maria ainda uma menina de 12 anos, aluna na escola do Templo de Jerusalém, ao qual fora oferecida e consagrada pelos seus pais quando tinha três anos, um costume antigo no Judaísmo e conforme à promessa feita por Santa Ana.

Recordemos pois Ana e Joaquim, a sua fé e esperança, a sua tenacidade e a sua crença, determinação e amor à Mãe de Deus, a Virgem Maria. Pelos seus frutos os conhecereis, bem dizia São João Damasceno.

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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