Onde andam os Patriarcas?
O conflito que opõe a Rússia e a Ucrânia não é de agora, pois que nunca os dois países se entenderam desde o fim da União Soviética. Na realidade, a culpa nem sequer pode ser imputada directamente a uma das partes por quanto, um pouco à semelhança do que aconteceu em África, no Médio Oriente e até em algumas zonas do Sudeste Asiático, as fronteiras foram delineadas por terceiros – leia-se, Estados Unidos, CEE/UE e NATO – a seu bel-prazer económico e financeiro.
Mas não indo tão atrás, até porque é da actualidade que se trata, o actual conflito entre Moscovo e Kiev teve origem naguerra da Crimeia, que em 2014 culminou na anexação desta península pela Federação Russa. Independentemente de quem tem (ou teve) razão, os números não mentem e hoje os crimeios gozam de um nível de vida bastante superior aos vizinhos do lado ocidental, muito por força dos avultados investimentos russos públicos e privados na região.
Nos últimos dias, muitas foram as vozes dos dois lados da fronteira que manifestaram vontade de alcançar um acordo, com vista a evitar um conflito armado cuja consequência mais imediata seria a desestabilização de toda a Europa, já de si enfraquecida devido ao efeitos da pandemia de Covid-19 nas economias e no dia-a-dia dos cidadãos.
Mas se estas são verdades, porquanto os factos isso provam, de “la palisse”, há uma outra realidade da qual não se fala e que pode ajudar a explicar porque o diálogo entre a Rússia e a Ucrânia atingiu o ponto de quase ruptura: a separação da Igreja Ortodoxa da Ucrânia em relação à Igreja Ortodoxa Russa, em Janeiro de 2019.
Com a ascensão de Vladimir Putin ao poder, a Igreja Ortodoxa Russa voltou a ocupar o lugar que tinha com os czares, nomeadamente com Nicolau II, dado a autoridade do último Imperador da Rússia ter começado a ser contestada desde a sua coroação e caber ao Patriarca de Moscovo reconhecer e proteger a “divindade” dos czares, a qual legitimava o poder absoluto do monarca.
Ainda hoje, no Kremlin, o Presidente Putin e o Patriarca Cirilo I coabitam o mesmo espaçofísico– um nas suas funções políticas e o outro nas funções religiosas que lhe estão atribuídas. Embora a Constituição do País seja muito explícita na obrigatoriedade de separar o Estado da Religião, já por mais de uma vez que Putin declarou ser a Igreja Ortodoxa Russa a religião do Estado. Esta aproximação não se cinge apenas ao Kremlin, sendobem patente um pouco por toda a cidade, através de cartazes que promovem a Família e outros valores igualmente importantes para o Cristianismo.
Apesar de haver indicadores que nos levam a pensar que a cisão religiosa provocada pelos ortodoxos ucranianos foi uma retaliação em relação aos russos pela anexação da Crimeira, não o podemos afirmar taxativamente.Areferida anexação foi oficialmente consumada em Janeiro de 2015, depois de conhecidos os resultados do referendo realizado junto dos habitantes da Península, e a cisão dos ortodoxos apenas teve lugar quatro anos depois. A verdade é que durante este período de tempo os Governos de Moscovo e Kiev foram dialogando, muitas vezes de forma encapuzada, tendo os canais de diálogo começado a escassear, precisamente após 2019, ano do divórcio entres os dois mais importantes e emblemáticos ramos da ortodoxia do leste europeu.
Segundo foi noticiado pela agência LUSA em Janeiro de 2019, a cisão foi outorgada pelo Patriarca Ecuménico de Constantinopla, Bartolomeu I, em Instambul (Turquia).
“A Igreja Ortodoxa da Ucrânia estava vinculada à da Rússia desde 1686 e a hierarquia ortodoxa de Moscovo sempre se opôs ferreamente às tentativas de separação de Kiev”, explicavaa LUSA, acrescentado que “a procura da independência [da Igreja Ortodoxa da Ucrânia em relação à Igreja Ortodoxa Russa] intensificou-se depois da anexação pela Rússia da península ucraniana da Crimeia e do apoio de Moscovo a milícias separatistas no leste da Ucrânia”.
E se dúvidas houvesse que nestes países Estado e Religião estão efectivamente de mãos dadas, à época “o Presidente ucraniano afirmouque a «autonomia [da Igreja Ortodoxa da Ucrânia]é um acontecimento de uma importância similar à da aspiração de entrar na União Europeia e na NATO»”.
PAPA PREOCUPADO
Depois do arcebispo da Igreja Greco-Católica Ucraniana, D. Sviatoslav Shevchuk, ter incentivado ao diálogo, à cooperação e à solidariedade, com vista a evitar uma guerra entre a Ucrânia e a Rússia; e do núncio apostólico da Santa Sé em Kiev, o arcebispo D. Visvaldas Kulbokas, ter praticamente replicado as mesmas palavras, o Papa Francisco reiterou a necessidade dos políticos alcançarem a paz pela via diplomática. Durante a oração do Ângelus do passado Domingo, o Santo Padre afirmou: «Confio à intercessão da Virgem Maria e à consciência dos responsáveis políticos todos os esforços pela paz».
Já no início desta semana, o núncio apostólico na Ucrânia voltou a prestar declarações, desta feita ao “site” da Internet “Vatican News”. «As pessoas estão muito preocupadas e tensas; é evidente que os políticos muitas vezes não encontram ferramentas adequadas para superar os conflitos, porque quase sempre há algum conflito entre os interesses de parte», referiu D. Visvaldas Kulbokas.
As muitas iniciativas ecuménicas organizadas pela Santa Sé ao longo dos últimos anos, com o alto patrocínio dos últimos três Papas (São João Paulo II, Bento XVI e Francisco) podem de novo dar frutos, desde que os interlocutores no terreno, sejam políticos ou religiosos, estejam dispostos a ouvir e a actuar em prol das populações. É que caso seja disparado o primeiro tiro, deixaráde haver ucranianos e russos, mas apenas irmãos que se matarãoem prol de quase nada.
Falhadas as mesas redondas (ou cumpridas, no caso do encontro entre Putin e o Presidente francês, Emmanuel Macron…), talvez esteja na hora de avançarem aqueles que têm na Oração a arma da Paz, mesmo que ainda haja feridas por sarar!
José Miguel Encarnação