Rui Filipe Torres, realizador de cinema

Macau inspira “road movie” no feminino

Actor, argumentista e realizador português, Rui Filipe Torres nasceu em Lisboa onde tem residido grande parte do tempo. Passou a infância simultaneamente em Lisboa e numa aldeia do concelho de Águeda. Barcelona, Madrid, Amesterdão, Maputo, foram as suas cidades-vivência. Estudou Ciências da Comunicação no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa. Tem o curso de formação de actores da Comuna Teatro de Pesquisa e frequência do curso de aperfeiçoamento de actores da Fundação Calouste Gulbenkian. Cursou jornalismo em televisão e rádio no Centro de Formação Profissional para Jornalistas. Após uma experiência a Oriente na área do documentário em 2012, Rui Filipe Torres tenciona regressar ao território, desta vez para um projecto de ficção. Chamar-se-á “Em Trânsito” e reflecte o sentir de alguma da geração de portugueses que nasceu em Macau e Portugal poucos anos antes da transferência de soberania, e que está de regresso à RAEM.

O CLARIMÉ autor do documentário “Macau2012/13”. Qual a repercussão em Portugal?

RUI FILIPE TORRES – É seguramente uma coincidência, ou talvez o resultado de estar mais atento a tudo o que a Macau e às relações Portugal – Macau – República Popular da China diz respeito, mas o facto é que as relações Portugal – Macau – RPC estão mais presentes nas agendas dos média e dos actores políticos. Evidentemente que este facto não está directamente relacionado com a realização do documentário. Será seguramente mais correcto inverter a relação. Podemos dizer que o facto de a RTP Internacional, numa altura em que era director de antena Jaime Fernandes, ter aceitado a proposta que apresentei para a realização do trabalho referido, reflecte essa necessidade de tornar mais próximo da comunidade portuguesa o território de Macau. Como sabemos o desconhecimento gera indiferença, e o momento social económico político e cultural que vivemos, em que a alteração das relações Ocidente – Oriente é um facto quotidianamente verificável, pede tudo menos indiferença e desconhecimento.

CLFoi projectado noutros países, além de Portugal e Macau?

R.F.T. – “Macau2012/13” teve emissão planetária através da rede de emissores da RTP Internacional que cobre todo o globo. Curiosamente o único lugar onde não se vê a RTP Internacional é Portugal. No entanto, não sei se as três partes que constituem o documentário, mas sei que a primeira parte, mais centrada nas questões ligadas à identidade e pertença, foi emitida na RTP 2. Sei porque aconteceu ter entrado num restaurante e ser esse episódio que estava no ar naquele momento. A trilogia também foi apresentada no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, numa organização do Instituto do Oriente. Mais tarde fiz uma remontagem com o material recolhido, o documentário longa-metragem “Macau Um Longe Tão Perto”, que foi apresentado na programação do auditório da Fundação Oriente em Lisboa, e também numa programação da Noite dos Investigadores Europeus, no auditório da Faculdade de Ciências em Lisboa, por proposta do Instituto do Oriente.

CLPor que razão decidiu filmar Macau?

R.F.T. – Para além de questões de natureza mais pessoal e afectiva que resultam em grande parte de conversas com um amigo que infelizmente já morreu, estou a falar do Miguel Lemos, que foi quem reorganizou o Gabinete de Comunicação Social de Macau, o meu interesse em filmar Macau resulta da procura de melhor entender as novas dinâmicas sociais contemporâneas em territórios de acelerada mudança, de perceber melhor a importância do património simbólico, material e imaterial, nessas dinâmicas, bem como perceber as diferentes dimensões que são hoje resultado do tempo histórico nas relações de Portugal com o Oriente e em particular com a RPC através de Macau. A trilogia em questão também fez parte da minha dissertação de final de licenciatura em Ciências da Comunicação, no ISCSP.

CLQual a importância de um documentário dessa natureza na projecção além-fronteiras da actual realidade da RAEM?

R.F.T. – O documentário com construção formal muito próximo do género informativo dá a conhecer contextualizando um conjunto de forças sociais e institucionais fortemente empenhadas no desenvolvimento de Macau e no seu já reconhecido papel enquanto plataforma de excelência no desenvolvimento das relações económicas, sociais e políticas entre a RPC e o que designamos por comunidade dos países da Lusofonia. Tornar mais próxima dos públicos esta realidade, num momento em que a opinião pública é cada vez mais um actor com relevância no desenvolvimento das relações internacionais dos Governos e dos povos, parece não levantar dúvidas quanto ao seu interesse e relevância. Tanto mais porque as programações dos canais de televisão são maioritariamente ocupadas com programas onde o apelo a reinterpretações reflexivas do real são bastante escassos.

CLEstreou recentemente em Portugal o filme “Crime”, inspirado no assassinato do colunista social Carlos Castro. Porque decidiu fazer um filme deste género?

R.F.T. – Esse filme resulta em grande parte do facto de ser um projecto possível de executar sem grandes meios de produção. Trata-se de um filme com dois actores rodado em onze noites num único décor. Um quarto de hotel onde dois homens estão de partida para Nova Iorque, uma viagem que ambos fazem por motivos diferentes e que se transforma num ritual que convoca a dominação, a dor, o amor, essa noite de véspera de viagem torna-se noite de catarse. O filme parte de um drama real, mas distancia-se desse facto para construir uma ficção/ritual em que a pulsão sexual, as construções sociais das identidades sexuais são trabalhadas como factos sociais na cultura ocidental. Trata-se de um jogo de submissão e poder que termina em morte. Em “Crime” a fala é também o cinema, são evocados actrizes, actores e filmes. É um filme onde o actor e o texto são centrais na sua construção narrativa e onde a idade é trabalhada enquanto factor de poder, diferenciação e desejo. Homossexualidade, homofobia, Imprensa cor-de-rosa, poder económico e social, desejo erótico, posturas arcaicas da religião com a sexualidade, desejo e transgressão, são os lugares temáticos por onde o filme se constrói.

CLQual foi a receptividade do público? Pretende trazê-lo a Macau?

R.F.T. – No próximo mês de Maio o filme vai estar em exibição numa sala do cinema City Alvalade, em Lisboa. Antes teve ante-estreia na Cinemateca a 7 de Janeiro, a sala estava cheia e correu bem. Vamos ver o que vai acontecer agora na exibição em sala e em festivais. Era bom levar o filme a Macau, se a oportunidade surgir isso acontecerá.

CLEstá a preparar a rodagem de um novo filme. Pode falar-nos sobre ele? Temática. Título. Actores.

R.T.F. – Chama-se “Em Trânsito”. Tem o António da Cunha Telles como produtor. O filme está a concurso no ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual) para encontrar parte do financiamento necessário à sua execução. É um road movie no feminino, Helena, a protagonista, está em fuga, procura-se a si mesma, tenta encontrar-se no sentimento de pertença. Jarmusch, Francisco e Vasco fazem uma viagem pelas rotas do Surf na costa portuguesa e de Espanha. As duas viagens transformam-se numa, a do filme “Em Trânsito”. O filme é rodado em Portugal, Macau e Tarifa (Sul de Espanha). É uma longa-metragem de ficção que integra partes documentais. De onde sou, onde pertenço? É o tema central do filme. Quando alguém cresce em contexto de mudança de ambiente, separa-se e perde os amigos de infância e de adolescência, mas também os próprios lugares, e um sentimento de não-pertença, de identidade difusa começa a instalar-se. Se a esse sentir, se acrescentar os conflitos da liminaridade, utilizando o conceito do antropólogo Victor Turner, desse tempo-movimento de fronteira, próprio ao começo da idade adulta, e se a tudo isto se somar a plasticidade dos valores das sociedades da hiper-modernidade, o problema da pertença torna-se central na objectivação do eu e do outro. E esse é o tema, a linha condutora que percorre o filme. A protagonista do filme nasceu em Macau, é filha de macaense e mãe portuguesa. O filme trabalha sobre uma geração de portugueses que nasceu em Macau e foi para Portugal aquando da transferência de soberania, e que está de regresso à RAEM, com particular expressão a partir de 2006/2008. Helena nasceu em Macau. Em 1999, aquando da transferência de soberania era pré-adolescente, nessa altura foi para Lisboa com os pais. O pai, advogado, em 2004 regressa e fixa-se no território, a mãe permanece em Lisboa. Helena tem dificuldade em saber qual o local de pertença, a família paterna é macaense e a materna portuguesa. É uma história cheia de acontecimentos inesperados, uma estória de amor, que dá a conhecer Portugal e Macau. No casting para já temos a actriz brasileira Graziella Schmitt que vai fazer a personagem Chanel, a amiga da Helena. A Helena, muito provavelmente, vai ser interpretada pela Lou Shou, a ser assim, vai ser a estreia de uma nova actriz.

CLContou com algum apoio da RAEM?

R.F.T. – Este filme está agora em fase de montagem financeira. Na trilogia documental “Macau2012/13” a Fundação Macau apoiou com um pequeno montante para o documentário, para o projecto. No “Em Trânsito” a Xiang Art, do José Drummond, é associada na produção. Vamos procurar obter financiamento também em Macau, estamos nessa fase.

CLE na área do documentário, algo na forja?

R.F.T. – Uma longa documental da autoria de Joaquim Magalhães de Castro (risos), que parte da “Peregrinação” do Fernão Mendes Pinto. Foi pedido apoio para escrever o argumento ao ICA. Aguardamos com expectativa a possibilidade de desenvolver esse fascinante projecto.

CLÉ sabido que o panorama actual do cinema em Portugal não é famoso. É ainda possível trabalhar nesse sector? Com que meios? Para quem?

R.F.T. – O cinema é uma actividade difícil, o financiamento não é fácil. No entanto, paradoxalmente, o cinema invadiu todos os territórios do habitar contemporâneo, vivemos o tempo do ecrã, das salas de cinema aos telemóveis, da publicidade à televisão, da comunicação política à comunicação de produto, o cinema é a linguagem contemporânea e o lugar do pensamento do mundo. Os meios vão mudando, o digital chegou e transformou o modo de fazer e ver cinema, muito provavelmente a Internet vai assumir um novo protagonismo na difusão das obras. O cinema é uma fala, uma linguagem, é arte e indústria, lugar de diversidade e encontro, diálogo do contemporâneo. Os filmes e o cinema são o diálogo de hoje dos povos e nações. O cinema é, a par da literatura, o mais forte meio para a comunicação e difusão da cultura dos povos.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *