Sheikh David Munir, Imã de Lisboa

«O Islão precisa de educação»

Um ano depois de um dos piores actos de terrorismo islâmicos em África, o rapto de perto de trezentas raparigas na Nigéria pelo Boko Haram, a Renascença (RR) foi recebida na Mesquita Central de Lisboa pelo sheikh David Munir. 

Numa entrevista em que defende a importância da educação (o inimigo principal do Boko Haram) para todos no mundo islâmico, o imã lamenta que quando um muçulmano perturbado mata pessoas considera-se terrorismo, mas quando um piloto alemão perturbado faz o mesmo já ninguém usa o mesmo termo.

RENASCENÇAFaz esta terça-feira um ano que foram raptadas centenas de raparigas de uma escola na Nigéria, por um grupo que diz agir em nome do Islão. Enquanto clérigo muçulmano, como é que isto o faz sentir?

Sheikh David Munir – Com muita tristeza, com muita mágoa, muita dor. O facto de qualquer acção de agressividade ser feita, por qualquer pessoa, já é triste. Quando é feita em nome de uma religião que transmite a paz e quer uma boa convivência entre as pessoas e entre os povos, muito mais nos entristece. Infelizmente já se passou um ano e ainda elas continuam nas mãos deles e parece que a comunidade internacional parou, não se consegue fazer nada, fala-se muito e faz-se quase nada.

RREste ano tem sido particularmente complicado em termos de terrorismo por parte de grupos fundamentalistas islâmicos. O rapto das raparigas na Nigéria, a ascensão do Estado Islâmico, o ataque ao Charlie Hebdo, o massacre na Universidade de Garissa, no Quénia…Tem sido difícil para a comunidade muçulmana gerir o impacto destes actos?

S.D.M. – Não tem sido fácil. É um a seguir ao outro… Tentamos esclarecer as pessoas e vamos continuar a fazê-lo, independentemente de as pessoas gostarem ou não, de criticarem ou não, vamos continuar a fazê-lo e a dizer a verdade, porque quem esconde a verdade é mais criminoso que aquele que comete o próprio crime.

RREm Portugal não tem havido situações destas, mas no resto da Europa, sim. Porquê?

S.D.M. – O problema das outras comunidades islâmicas no Ocidente, mais concretamente na Europa, é de integração, convivência e ajustes de cultura. Nós não perguntamos aos muçulmanos portugueses se estão ou não integrados, nem sequer se coloca. Então porque é que está na agenda das outras comunidades? Porque desde o início, quando essas comunidades começaram a crescer, foram-se criando guetos, e temos vários casos em vários países da Europa. Aqui não temos, felizmente, porque, se tivéssemos, provavelmente iríamos ter mais ou menos os mesmos problemas de base. Depois, a nova geração é muito globalizada. Tudo o que se passa num local, de imediato, todo o mundo fica a saber e depois é através das redes sociais que, infelizmente, alguns muçulmanos com pouco conhecimento, e um pouco perturbados… Porque esse aspecto também é importante, muitos deles estão perturbados e com pouco conhecimento e com alguma perturbação, facilmente caem nessas teias. Depois tornam-se radicais, terroristas, matam pessoas inocentes. Mas se for um não muçulmano que mate 150 pessoas inocentes, como aconteceu recentemente [no desastre do avião da Germanwings], ele nunca é considerado terrorista.

RRO Estado Islâmico aponta para antecedentes na tradição da jurisprudência islâmica para quase todos os seus actos, incluindo o lançamento de homossexuais do topo de prédios, a escravatura de membros de minorias religiosas, a lapidação de adúlteros e o corte das mãos a ladrões. Estes antecedentes de facto existem…

S.D.M. – As pessoas têm de ter noção que o Alcorão é o código de vida dos muçulmanos. Acontece que a prática do Alcorão é a “Sunna”, aquilo que o profeta disse ou aquilo que o profeta fez. O que vem a seguir, a jurisprudência, a analogia, vem quando as pessoas tentam interpretar um assunto que não está mencionado directamente nos “hadites” [dizeres atribuídos a Maomé e que chegaram por tradição oral] nem no Alcorão. Muitas das vezes a resposta que é dada não é exactamente a mesma que seria dada há uns anos. Há sempre aqueles teólogos que dão uma interpretação não diria necessariamente errada, mas um pouco mais exagerada, mais conservadora, da prática do Islão. É a tradição do profeta comer com as mãos, mas uma pessoa comer com talheres não é cometer um pecado. Era tradição do profeta sentar-se no chão para comer, mas uma pessoa utilizar a mesa não é pecado. Temos de saber adaptar-nos.

RREssas interpretações mais fundamentalistas tendem a ser de tradição salafita, que é a inspiração para grande parte dos jihadistas…

S.D.M. – Muita coisa dita sobre o salafismo não é verdade. Na realidade, na prática, estando com eles, convivendo com eles, não tem nada a ver com muitas das coisas que ouvimos falar. Eles têm feito muito trabalho positivo para que as pessoas possam, no mínimo, praticar o Islão de acordo com as suas possibilidades. Não só pelo facto de construírem mesquitas (uma virtude enorme), mas também por apostarem na manutenção da mesquita, como é que ela deve ser dirigida, como é que tem de ser visitada, como é que tem de se explicar o Islão. Há muita coisa que tem sido feita que infelizmente não é divulgada, nem sequer é dita.

RRO salafismo é também o tipo de Islão praticado na Arábia Saudita. A comunidade Islâmica de Lisboa aceitou ajuda financeira da Arábia Saudita para construir esta mesquita?

S.D.M. – Recebemos de uns empresários, foi particular.

RRCom essa ajuda nunca sentiram pressão sobre os vossos ensinamentos?

S.D.M. – Nunca. A Mesquita Central de Lisboa é uma mesquita aberta para todos, não há influência directa nem indirecta de qualquer ideologia ou de qualquer escola de interpretação do Islão ou de qualquer tipo que não seja islâmico. A mesquita é de todos.

RRO presidente do Egipto disse recentemente que é preciso fazer-se uma reforma do Islão. O que lhe parece esta frase? Isso seria sequer possível?

S.D.M. – Bem, dizer que é preciso fazer uma reforma do Islão é algo muito vasto e muito complexo. Reformas de quê? Mais importante é educar os muçulmanos, criar condições, seja no Egipto ou em qualquer parte, em países islâmicos, enfatizar mais a educação, muito mais. Para eles e para elas. 

E depois, tentar equilibrar o aspecto social. É interessante que um dos pilares básicos do Alcorão é a caridade. Se cada muçulmano contribuísse com a caridade obrigatória pode crer que muita pobreza iria acabar.

RROlhando para o que se passa no Médio Oriente, concorda que a raiz do problema está num conflito entre sunitas e xiitas?

S.D.M. – Não. O problema entre sunitas e xiitas pode-se resolver, se eles quiserem e se se entenderem. O problema do Médio Oriente, mais concretamente, é o problema entre o Estado de Israel e a Palestina. Se Israel respeitar a Palestina e se a Palestina respeitar Israel, mas respeitar mesmo, então 50% dos problemas serão resolvidos. Como é que o problema entre Israel e Palestina está a afectar o Iémen, onde vemos uma intervenção de vários países sunitas e o Irão a apoiar os houthis… Isso é um reflexo daquilo que se vai passando no Médio Oriente. Nem temos de ir ao Iémen, vamos ao Iraque…

RRMesmo o Iraque, como é que esses problemas entre xiitas e sunitas dependem de Israel?

S.D.M. – Estamos a falar do Médio Oriente, em geral. Se houver um entendimento [entre Israel e Palestina] então é uma bola de neve.

Filipe d’Avillez

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