Tão bastardos que nós somos
A residir no Brasil há já alguns anos, o jornalista Carlos Fino veio, a propósito do incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro, dar-nos conta da postura de um indivíduo brasileiro de nome Robson Lucas de Oliveira (descendente de portugueses, portanto), que da seguinte forma, nas redes sociais, se regozijou com o terrível sinistro que em poucas horas reduziu a cinzas um património de valor incalculável: “Justiça histórica sendo feita pelas mãos do acaso. Acaba de ser consumida em chamas a antiga Casa Grande da família que por anos dominou, massacrou, e explorou o povo brasileiro, além de ser notoriamente conivente com a escravização dos negros africanos”. Logo depois, para os menos esclarecidos, faz Robson o seguinte reparo: “Aos que não me compreendem: tudo o que apague do cenário brasileiro a lembrança daquele período nefasto (assim como de outros) é um alívio para mim e certamente para todos cujo sofrimento actual é uma herança daquela época”. Esta enormidade, que reflecte o sentir de uma certa elite intelectual e social inimiga de tudo o que cheire a lusitanidade, mereceu quatro mil e 900 comentários e duas mil e 500 partilhas.
Se é verdade que muita gente reagiu ao descaramento, criticando a afirmação de Robson (um coitado com claros problemas de identidade), quase outros tantos foram os apoiantes do dislate, a julgar pelo elevado número de partilhas. Nada que me faça admirar. É óbvio que o caso Robson não é um caso isolado. Persiste no Brasil uma profunda hostilidade em relação a tudo que tenha a ver com Portugal e os portugueses – nas palavras de Carlos Fino, «velho estigma anti-lusitano, que continua em boa parte a ser alimentado na escola, na historiografia, na literatura, no cinema e nos media do Brasil, deixa naturalmente marcas profundas». E isto, apesar dessa elite, maioritariamente composta por brancos, descendentes directos de fazendeiros e traficantes de escravos, acossada pela actual instabilidade social e os surtos de delinquência exacerbada, estar a mudar-se com armas e bagagens para Portugal, sendo até, a par com os franceses, aqueles que mais investem no apetecido sector imobiliário nacional. Mas atenção: a responsabilidade deste mútuo descaso não está só no outro lado do Atlântico. Como salienta o conhecido jornalista, «há pelo menos 15 anos que se assiste a um apagão mediático português no Brasil – a Lusa fechou portas, a RTP foi retirada pela Globo da principal rede de distribuição por cabo e a SIC, que está lá, não tem programação especificamente dirigida ao Brasil». A verdade é que não há hoje um único meio de comunicação capaz de elucidar os brasileiros acerca das suas mais profundas raízes, continuando, para mal dos nossos pecados, a literatura e o audiovisual que por cá se faz a ser no lado de lá totalmente ignorado, pese as centenas de milhares de potenciais leitores e espectadores.
Entre Portugal e o Brasil, por incrível que pareça, nunca existiu uma estratégia cultural comum, nem nunca foram elaborados conteúdos específicos divulgadores do passado desses dois povos que têm muito mais em comum do que aparentam. Daí que não seja de estranhar a perversa satisfação do jovem Robson, e nem seria de admirar que se viesse a atribuir ao dito incêndio origem criminosa. Não foi o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo devorado também pelas chamas, aqui há uns anos? Infelizmente, nós, portugueses de hoje, continuamos a não ser exemplo para coisa nenhuma. Contrariamente aos “nuestros hermanos” ou aos habitantes dessa manta de retalhos que é a Península Itálica. Embora encerrem em si múltiplas realidades étnico-culturais com conflitos latentes, um e outro tocam a reunir sempre que se trata da defesa do interesse pátrio. Em Portugal abundam anti-portugueses sempre dispostos a denegrir e apoucar a nossa História a troco de simpatias políticas ou a soldo de agendas nitidamente globalistas. Só se constroem nações de escravos após uma selectiva imbecilização das massas.
Da lavra de uma figura de destaque desse escol de paladinos – convidados quase residentes dos festivais literários brasileiros e restante universo latino americano, ocupando todo o espaço que há para ocupar – atente-se ao seguinte parágrafo redigido no rescaldo do incêndio: “Portugal colonizou o Brasil por 300 anos. Essa colonização deixou uma herança pesada que até hoje faz parte das vidas, dos corpos, dos lugares, como sabe qualquer pessoa que viva o Brasil por um tempo. Qualquer pessoa que ouça, por exemplo, a nova geração negra a emergir politicamente nestas eleições, como eu ouvi nas últimas semanas (…): não há um, de entre eles e elas, que não mencione o passado colonial, base de um sistema escravocrata, com uma elite no topo, perita em manipular, destruir ou impedir narrativas que não lhe convenham. Essa colonização não é só passado, é presente e futuro. É uma responsabilidade dos vivos, nossa, contínua, não se encerra. Pode traduzir-se de muitas formas, em palavra ou acção. Mas é difícil pensar num edifício tão simbólico quanto o Museu Nacional”. No fundo, a dita paladina (sim, é uma ela) tem a mesma posição dos Robsons Lucas de Oliveira deste mundo. Ou seja, dois séculos após a independência, insiste-se em continuar a culpar o colonizador português por todos os problemas de que o Brasil padece.
É curioso, ao viajar pela América hispânica, ao conviver com guatemaltecos, nicaraguenses, equatorianos, mexicanos, argentinos, chilenos, uruguaios, bolivianos, paraguaios, venezuelanos, colombianos, panamianos, costa-riquenhos, porto-riquenhos, hondurenhos, salvadorenho, cubanos, dominicanos, nunca os ouvi atribuir os problemas dos seus países ao colonizador espanhol. Nunca os ouvi dizer que o espanhol tinha culpa disto ou daquilo, ou que lhes roubara o ouro. Pelo contrário, existe entre o ex-país colonizador e as ex-colónias um profícuo intercâmbio cultural. No Brasil – e essa uma especificidade muito sua – não é assim. Tudo o que há de negativo é atribuído ao “burro do portuga” de costados largos. É ele o bombo da festa do anedotário nacional. Jô Soares, por cá idolatrado, não perde uma ocasião de contar a “anedota de português” da praxe. Fá-lo sempre que o convidado é uma personalidade lusa, coisa muitíssimo rara, diga-se de passagem. Por diversas vezes vi humoristas portugueses renderem-se subservientemente perante o poder do “Gordo”, incapazes de uma mísera resposta à venenosa provocação. Anedotas sobre espanhóis? Não, isso não passa pela cabeça de nenhum habitante da América Latina hispânica. Por que será?
Joaquim Magalhães de Castro