A Paz no nosso mundo problemático – I

REFLEXÃO

A Paz no nosso mundo problemático – I

“Todas as coisas desejam a paz”, diz-nos Santo Agostinho. São Tomás acrescenta: “Desejamos obter o que desejamos”. Como seres humanos, como cidadãos de uma nação e do mundo, como cristãos, estamos empenhados em trabalhar pela Paz – pela paz interior e social! E, no entanto, olhamos para o nosso mundo e vemos guerras, violência, divisão, injustiça e opressão.

Neste tempo que atravessamos, vamos reflectir nesta e nas próximas três edições d’O CLARIM sobre a Paz, a partir dos ensinamentos da Sagrada Escritura, de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino e, mais especificamente, a partir da Doutrina Social da Igreja.

A seguir, consideramos o significado de Paz (1), os seus tipos (2), o seu principal obstáculo: as guerras (3), e o remédio contra a violência e as guerras: o amor não violento (4).

Começamos a nossa jornada pacífica com a pergunta: o que é a Paz?

SIGNIFICADO DE PAZ

Na perspectiva humana, a Paz é um dos anseios mais profundos da Humanidade. Significa ordem, felicidade, amor e harmonia.

Paz é harmonia: nas culturas e religiões asiáticas, harmonia significa harmonia na pluralidade. É descrito como bem-estar, ordem correcta, justiça e amor nas relações humanas. Está centrada nos relacionamentos interpessoais, desde que correctos, isto é, dentro de determinados padrões.

Para o cristão, Deus é o Senhor da Paz (1 Tessalonicenses 5, 23). Na Carta Apostólica Novo millennio ineunte (“No início do novo milénio”), o Papa João Paulo II deseja que “Deus deve tornar-se cada vez mais aquilo que é: um nome de paz, um imperativo de paz” (NMI, 55).

Jesus Cristo é o Príncipe da Paz (Is., 9, 6), a nossa paz (Ef., 2, 14). Ele entra no nosso mundo trazendo paz à terra (Lc., 2, 14), com a habitual saudação aos seus discípulos: “A paz esteja convosco” (cf. Lc., 24, 36; Jo., 20, 19-21). Ele é o pregador do Evangelho da paz (Ef., 6, 15). Ele proclama o Reino de Deus, que significa «justiça, paz e alegria» (Rm., 14, 17). Através da sua vida, morte e ressurreição, Jesus Cristo é o Pacificador: através do derramamento do seu sangue, Ele reconcilia a pessoa humana com Deus, os humanos com os humanos (Ef., 2, 14-17), e todo o universo consigo mesmo (Cl., 1, 20). Antes de subir ao céu, Jesus diz aos seus discípulos: «Deixo-vos a paz; a minha paz vos dou; este é o meu presente para vós» (Jo., 14, 27).

Com o Pai, Jesus, o Senhor Ressuscitado, envia-nos o Espírito Santo, o Espírito da Paz. A Paz é um dos grandes dons do Espírito Santo (Gl., 5, 22). É um dom de Deus que excede todo o entendimento (Fl., 4, 7), um dom aos justos, que caminham pelo caminho da paz (Lc., 1, 79), «a todo aquele que pratica o bem» (Rm., 2, 10). Ao contrário, “para os ímpios não há paz” (cf. Is., 48, 22 e 57, 21). Com efeito, «felizes os mansos» (Mt., 5, 4), «felizes os pacificadores» (Mt., 5, 9). Estando em Paz, fazendo a Paz, os filhos de Deus caminham em direcção à Paz perfeita no fim dos tempos, quando não haverá mais lágrimas, «não haverá mais morte, nem pranto, nem choro, nem dor» (Ap., 21, 4).

Agostinho diz que a Paz é tranquilidade da ordem, tranquilidade da ordem pessoal e social, o que não significa, por um lado, a calma da morte – do cemitério – e, por outro, a ordem social nas nossas sociedades seculares, no nosso mundo egoísta. Para São Tomás de Aquino, a Paz é – com misericórdia e alegria – um efeito da caridade ou do amor de Deus em nós. O Papa Paulo VI acrescenta: “A ordem humana é um acto, e não um estado; portanto, a paz ‘está num movimento progressivo’ (Mensagem, 1 de Janeiro de 1970)”. A paz é dinâmica, “a paz nunca é alcançada de uma vez por todas, mas deve ser construída incessantemente” (Vaticano II, Gaudium et Spes nº 78).

A Paz baseia-se no respeito pela dignidade da pessoa humana. A pessoa humana possui uma dignidade humana única, que implica perfeição, plenitude e valor. A dignidade humana, a dignidade fundamental, é igual em todos os seres humanos. Assim, alguém pode comportar-se de forma cruel e criminosa e, logo, perder a sua dignidade moral, mas não a sua dignidade humana básica. Todo o ser humano – nascido ou não nascido, jovem ou velho, homem ou mulher, negro ou branco, católico ou muçulmano, filipino ou espanhol – é igual a todas as outras pessoas humanas. Portanto, todo o ser humano não deve ser tratado como objecto, mas como sujeito; não como meio, mas como fim; nem como “isso”, mas como “ele” ou “ela” (relação de justiça) – ou, melhor, como tu (relação de amor).

Neste contexto, dois princípios básicos: Todos os seres humanos são iguais em dignidade e todos os Estados são, por natureza, iguais em dignidade (João XXIII, Pacem in Terris, 86, 89). A dignidade humana é expressa nos Direitos Humanos. “Afinal, a paz resume-se ao respeito pelos direitos invioláveis do homem” (João Paulo II, Redemptor Hominis, 17), a começar pelo direito à vida, que é um direito humano fundamental indivisível e inalienável. O ponto alto do magistério sobre a vida humana encontra-se na Encíclica de João Paulo II Evangelium Vitae (“O Evangelho da Vida”), onde somos repetidamente informados de que “não pode haver verdadeira paz a menos que a vida seja defendida e promovida” (EV, 101).

Na sua última Mensagem para o Dia Mundial da Paz (1 de Janeiro de 2013), Bento XVI escreve que a defesa da vida humana desde o momento da concepção até a morte natural pertence à natureza integral da Paz: “O caminho para alcançar o bem comum e a paz é acima de tudo o respeito pela vida humana em todos os seus múltiplos aspectos, desde a sua concepção, passando pelo seu desenvolvimento, até ao seu fim natural”. O Papa alemão menciona também, juntamente com o direito à vida, o direito à liberdade religiosa, incluindo a objecção de consciência e o direito ao trabalho. E sublinha ainda que a Paz é principalmente “a realização do bem comum na sociedade nos seus diferentes níveis, primário e intermediário, nacional, internacional e global”.

A verdadeira Paz – pessoal e social – é o fruto sempre maduro da prática da justiça, do amor: o testemunho de todas as virtudes, que estão interligadas: “Amei a paz que a virtude traz e odiei a discórdia causada pela corrupção e pela falsidade” (Santo Agostinho, “Confissões”).

Pe. Fausto Gomez, OP

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