Quaresma

Origem e significado da palavra

A Quaresma, que se aproxima agora do seu fim, faz parte das celebrações do calendário litúrgico da Igreja desde tempos antiquíssimos. A primeira menção explicita à Quaresma (τεσσαρακοστή) aparece no cânon 5 do Concílio de Niceia (325d.C.) e embora as suas origens sejam difíceis de precisar, S. Jerónimo (c. 347 – 420) e S. Leão Magno (c. 400 – 461), no Ocidente, e S. Cirilo de Alexandria (c. 376 – 444), no Oriente, afirmam que esta é de instituição apostólica, ainda que numa forma incipiente, como se pode depreender do testemunho de S. Ireneu de Lião (c. 130 – c. 202) que Eusébio de Cesareia (c.260 – c.340) registou na sua Historia Eclesiástica. De acordo com S. Ireneu, no seu tempo, o jejum preparatório para a Páscoa não excederia os três dias.

Hoje em dia diferentes teorias existem acerca das origens efectivas da Quaresma, algumas das quais sugerem que esta terá começado por ser um período de preparação para os catecúmenos a serem baptizados na vigília pascal desse mesmo ano.

O calendário litúrgico celebra momentos chaves da vida de Cristo e da Igreja. A tradição da Igreja de comemorar ciclicamente os momentos mais importantes da história da salvação tem como origem uma ordem expressa por Deus (Ex 12:1-3; 17-18) quando Este não só ordena, como estabelece a forma como os hebreus hão de celebrar a Páscoa Judaica que comemorava a libertação do cativeiro do Egipto. O próprio Jesus seguia o calendário das festividades litúrgicas dos judeus (Mt 26:17-18).

O tempo da Quaresma e da Semana Santa, assim como o do Advento, são tempos litúrgicos que têm uma natureza especial própria na medida em que, ao contrário do que acontece com tempos como o da Páscoa ou o do Pentecostes, estes não são resultado ou o epílogo de solenidades litúrgicas, pelo contrário antecedem festividades maiores para as quais servem, não somente, de introdução mas, sobretudo, de preparação.

 

A origem da palavra Quaresma

A Quaresma consiste num período de preparação para a Semana Santa e, finalmente, para a Páscoa. A palavra portuguesa Quaresma deriva da forma feminina do adjectivo ordinal latino quadragesima, como parte do sintagma quadragesima dominica dies, ou seja quadragésimo Domingo. Refere-se este quarenta aos quarenta dias que a Quaresma dura. Embora hoje em dia exista alguma confusão no modo de calcular o período quaresmal, estes quarenta dias vão da Quarta-feira de Cinzas até as primeiras vésperas de Domingo de Ramos, na tarde de Sábado quando começa a Semana Maior, como é aliás sugerido pelas rubricas do Breviário Romano de 1962.

A Quaresma como tempo de preparação para a Páscoa evoca os quarenta dias que Jesus passou no deserto em oração e jejum (Mt 4: 1-2) em preparação para a sua vida pública depois de ter sido baptizado por João Baptista no Jordão. Estes quarenta dias são prefigurados nos quarenta anos que o povo hebreu vagueou pelo deserto do Sinai antes de finalmente chegar à terra prometida (Nm 32:13).

 

A Quaresma na Igreja Oriental

Também a igreja oriental celebra este tempo litúrgico a que os gregos dão o nome de μεγάλη τεσσαρακοστή ou Grande Quaresma. Os orientais, salvo os Melquitas e os Maronitas, não celebram a Quarta-feira de Cinzas. Para a maior parte dos ortodoxos é a καθαρά δευτέρα ἡμέρα ou Segunda-feira da Limpeza ou Purificação que marca a entrada no tempo quaresmal.

Durante esta primeira semana da Quaresma ortodoxa (sétima antes da Páscoa) os fiéis são encorajados a se confessarem e costuma levar a cabo uma limpeza profunda da casa. O costume de limpar a casa por esta altura deriva em parte do costume judeu de limpar a casa antes da Páscoa de modo a se certificarem de que nenhum resto de fermento fica para trás. A limpeza espiritual durante a Quaresma tem objectivos semelhantes, o de se certificar de que não existem restos de pecado que impeçam a celebração condigna das alegrias pascais.

Tal como acontecia no Ocidente em tempos agora idos, os ortodoxos dão muita importância ao jejum e a abstinência durante este período. Tanto é assim que os gregos têm como alternativo para a Quaresma, o nome de μεγάλη νηστεία, ou seja Grande Jejum, e, em consequência, os orientais têm regras muito estritas no que ao jejum e a abstinência de certos alimentos dizem respeito. Para além disso, imediatamente antes da Quaresma propriamente dita os ortodoxos têm um período de três semanas de jejum para preparar para o grande jejum da Quaresma. Apesar da Igreja Latina nunca ter tido um tão extenso período de jejum e abstinência, até à reforma litúrgica de 1969-70, e ainda presente no uso extraordinário do Rito Romano, os latinos celebravam os Domingos da Septuagésima, da Sexagésima e da Quinquagésima, três semanas que, pelo uso de paramentos roxos e pelo tom das leituras e orações, preambulavam já a Quaresma. A perda deste antigo período litúrgico representa, de certo modo, mais um afastamento em relação aos nossos irmãos orientais.

 

A Penitência Quaresmal

O objectivo de Quaresma, enquanto tempo de reflexão, é introduzir-nos no mistério de um Deus que sofre pelas suas criaturas e dos sofrimentos que, no final, conduzirão a sua gloriosíssima ressurreição. Tendo em consideração que nós somos tanto corpo como espírito, é através do jejum e abstinência, da oração e confissão e da ajuda material aos necessitados, que nós não só fortalecemos o espírito, mas também dominamos o corpo. As inclinações da carne, ainda que naturais, podem muitas vezes apresentar-se como um obstáculo à nossa boa intenção de seguir aquele caminho traçado pelo «homem de dores, rejeitado e desprezado pelos homens» (Is 53:3).

Contrariamente ao que acontece no oriente ortodoxo, muitas das nossas tradições quaresmais têm vindo a se perder, especialmente desde os anos setenta quando um espírito que Paulo VI descreveu como «não mais de autocrítica mas sim de autodestruição» se instalou na Igreja.

Ultimamente, porém, parece existir um reavivamento de tradições que pareciam perdidas para sempre. Foi neste contexto que se começou a olhar outra vez para penitência, já não como um acto sem sentido e, segundo alguns, mesmo de superstição, mas como uma ferramenta de autodomínio e de santificação.

Muito recentemente, em 2011, para ser mais preciso, os bispos de Inglaterra e Gales, reintroduziram o jejum obrigatório em todas as Sextas-feiras do ano, um acto que foi descrito então como sendo histórico.

Vale a pena recuperar aqui algumas das passagens da carta dos bispos Ingleses. Diz a carta que «a penitência à Sexta-feira [é], na vida dos fiéis, um sinal claro e distinto da sua identidade católica [já que] através da penitência, os católicos se identificam com Cristo no momento da sua morte na cruz. Fazemo-lo através da oração, pela qual unimos os sacrifícios e sofrimentos da nossa vida quotidiana aos da paixão de Cristo; através do jejum, que pela renúncia que fazemos nos torna mais próximos de Cristo, e, finalmente, através do auxilio aos demais, pelo qual mostramos o reconhecimento do valor dos sofrimentos de Cristo presentes nos que sofrem à nossa volta. Estas três formas de penitência devem ser parte fundamental do modo de viver cristão, e quando perceptíveis aos demais, tornam-se, então, numa importante forma de testemunho. Através destas formas de penitência unimos os nossos sacrifícios ao sacrifico de Cristo que deu a sua própria vida para a nossa salvação».

Esta carta é assaz eloquente quanto ao valor e objectivos da penitência. Não se trata a penitência de exercícios mais ou menos masoquistas que uma vez ao ano se têm de levar a cabo, mas sim de uma ferramenta para nos aproximarmos da pessoa real de Cristo, tanto através do espírito como do corpo. Ao contrário do que Platão, entre outros, postulava, o Homem não é espírito que apenas habita um determinado corpo; o homem é sim corpo e espírito e é como Homem que nós nos relacionamos com Deus.

 

O significado do roxo quaresmal

Uma nota final acerca da cor roxa usada durante a Quaresma. Depois da reforma litúrgica de 1969-70, o roxo substituiu o preto como cor de luto nas missas de sufrágio pelos mortos. Essa mudança causou alguma confusão no significado da cor roxa nas celebrações litúrgicas que passou a ser interpretada como cor denotando uma certa tristeza, o que não é de todo o verdadeiro sentido nem da Quaresma nem do Advento. Até à descoberta da sintetização do amoníaco no século dezoito, o roxo era uma cor muito difícil de se manter e os tecidos roxos tinham de ser tingidos frequentemente, o que era bastante dispendioso. Em Portugal, por exemplo, em certas regiões do país durante a Idade Média, o roxo era extraído de cascas de cebola e, apesar de se usar urina de cabra como fixante, ainda assim a cor perdia-se com a lavagem e facilmente desmaiava ao Sol, algo que obrigava o constante retingir. Como tal, esta cor era acessível unicamente às classes mais abastadas e na antiguidade tornou-se associada à realeza apenas, passando a ser considerada como cor real. É exactamente por isso que os soldados para fazer troça de Jesus, acusado de se fazer passar pelo rei dos judeus, o vestem com um manto púrpura e uma coroa de espinhos (Jo 19:2). Em quadros antigos onde a realeza é depicta, o púrpura alterna ora com o vermelho, ora com o azul. Hoje a cor real da Inglaterra é o vermelho, da França o azul. Estas duas cores derivam do desmaio constante que no passado o roxo e o púrpura, conforme a composição, sofriam.

Neste contexto, o roxo ou o púrpura sugerem solenidade e altivez, não tristeza. Por isso mesmo, a Igreja veste-se do púrpura real para esperar a chegada do seu rei, primeiro no Advento, e depois na Quaresma.

Faz parte da própria natureza do rito Latino, à boa maneira romana, que a gravitas e a solenidade se façam marcar exteriormente pela sobriedade e pela simplicidade, o que dá ênfase ao conteúdo mais do que à forma. Assim, em vez de acrescentar mais elementos à sua liturgia, os tempos solenes do Advento e da Quaresma concentram-se mais no conteúdo espiritual e deixam para segundo plano os aspectos ornamentais. O púrpura marca assim o porte solene, mas discreto, que tudo aquilo que é verdadeiramente nobre deve ter.

Era tradição, ainda hoje observada em muitas igrejas, cobrir com panos roxos todas as imagens dentro da igreja durante a última semana da Quaresma e durante a Semana Santa. Este costume servia para marcar a centralidade do mistério pascal a ser celebrado dentro em pouco. Chegada a Vigília Pascal, enquanto o órgão, até aqui mudo, e as campainhas rasgavam o silêncio fúnebre de Sexta-feira Santa, os panos roxos eram removidos de modo a expor à luz, que pouco a pouco triunfa sobre o escuro templo, os rostos da corte celestial que outra vez se reúne à volta do seu Senhor ressuscitado enfim.

Laus Deo Virginique

Roberto Ceolin 

Universidade de São José

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