A eutanásia e a Bíblia
Roma publicou recentemente três documentos de grande relevância. O mais importante é a nova Encíclica sobre a fraternidade humana, assinada pelo Papa em Assis.
Os outros dois documentos são a Carta “Samaritanus bónus” (14 de Julho) e a Carta apostólica “Scripturæ sacræ affectus” (30 de Setembro).
REJEIÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE EUTANÁSIA
O primeiro texto é uma afirmação enérgica do valor de toda a vida humana e uma rejeição absoluta de todas as formas de eutanásia. O cuidado de cada pessoa é parte integrante da nossa relação com Deus, mas não é só um imperativo ético para os cristãos: todos os homens têm a obrigação moral de defender a vida.
“É a dignidade da vida humana que está em jogo!”, clama com força o Papa Francisco.
A recusa do aborto e da eutanásia são fundamentos básicos da ordem social. Em nenhum caso se pode colaborar nestes crimes, ou sequer facilitar que outros os cometam.
A Santa Sé cita a doutrina da Igreja, continuamente defendida ao longo dos séculos, expressa solenemente no Concílio Vaticano II, no Catecismo da Igreja Católica, na Carta “Salvifici doloris” e nas Encíclicas “Evangelium vitæ”, “Centesimus annus”, “Veritatis splendor” de João Paulo II; nas Encíclicas “Deus caritas est” e “Spe salvi” e em vários discursos de Bento XVI; na Encíclica “Laudato si” e nas Exortações apostólicas “Evangelii gaudium” e “Amoris laetitia”, e em numerosos outros textos do actual Papa, corroborada ainda em intervenções de Pio XII e de autores mais antigos.
O contraste com a apatia intelectual da opinião pública portuguesa não podia ser mais escandaloso. O Parlamento ignora preguiçosamente as tomadas de posição em favor da dignidade humana (nem sequer se dá ao trabalho de debater este documento da Santa Sé!) e prepara-se para aprovar mais uma lei iníqua.
SÃO JERÓNIMO E A BÍBLIA
Há dias, o Papa publicou a Carta apostólica “Scripturæ sacræ affectus”, a comemorar os 1600 anos da morte de São Jerónimo, conhecido pela monumental tradução da Bíblia para o Latim. Graças aos trabalhos preparatórios de grandes génios, como as Hexaplas de Orígenes, e ao apoio de várias pessoas, conseguiu elaborar uma nova tradução da Bíblia de extraordinária qualidade. Além de São Jerónimo ser um literato exímio em Latim e dominar o Grego, o Hebraico e o Aramaico, recorreu a outros especialistas para encontrar a palavra adequada a cada caso. O empreendimento durou muitos anos intensos, mas valeu a pena! Rapidamente a tradução de São Jerónimo se impôs e foi adoptada pela Igreja durante mais de mil anos. Esta tradução, com algum retoque posterior, costuma designar-se como a versão latina “Vulgata”, isto é, a “mais difundida”.
A última revisão começou em 1907, por iniciativa do Papa São Pio X, que confiou o encargo à Ordem Beneditina. O trabalho era tanto que tiveram de convocar outros estudiosos. Em 1933, Pio XI incumbiu a Abadia Pontifícia de São Jerónimo de dirigir o trabalho e, posteriormente, intervieram muitos outros, sobretudo jesuítas e dominicanos. Várias gerações de biblistas trabalharam anos a fio. A obra foi tão meticulosa que só avançava poucas páginas por ano, até finalmente João Paulo II receber o resultado completo e o promulgar em 1979. O texto revisto chama-se “Neovulgata”.
É verdade que as diferenças entre a Vulgata e a Neovulgata são relativamente poucas e são questões de pormenor, contudo, a Bíblia é tão importante para a Igreja que o mínimo pormenor é relevante.
Referindo-se a São Jerónimo nesta Carta apostólica, Francisco sublinha o seu apaixonado amor a Deus, à Palavra de Deus, à Igreja e ao Papa, porque Deus quis revelar-Se através da comunhão com o Povo de Deus. Como diz Francisco citando Bento XVI: “A Bíblia foi escrita pelo Povo de Deus e para o Povo de Deus, sob a inspiração do Espírito Santo. Somente com o ‘nós’, isto é, nesta comunhão com o Povo de Deus podemos realmente entrar no núcleo da verdade que o próprio Deus nos quer dizer”. A Bíblia é um texto que não vive fora da comunhão com a Igreja e com o Papa.
José Maria C.S. André
Professor do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa