Procissão Fluvial em Honra de Nossa Senhora da Atalaia

Canoas no Tejo e o professor cientista.

A procissão fluvial da Nossa Senhora da Atalaia, que todos os anos acontece no mês de Junho, tem no cientista Fernando Carvalho Rodrigues, “o pai do satélite português”, um dos mais devotados divulgadores e participantes. Lembra-se o professor, tinha ele oito anos, do desejo da sua avó de reabrir ao culto a igreja do Convento de Chelas que ardera em 1823, «pois aí funcionava um armazém de algodão de pólvora». Surgira então uma idosa local mostrando uma imagem da Senhora da Atalaia que dizia ter resgatado do incêndio; imagem essa que protagonizava uma muito antiga procissão fluvial entre Xabregas e Atalaia, na margem sul do Tejo. Carvalho Rodrigues ficou, desde então, com o desejo de um dia retomar a iniciativa. A oportunidade surgiria em 2005, fruto de uma estreita colaboração com os associados do Centro Náutico da Moita. Constituída, para o efeito, a Fundação do Círio, seria retomada nesse mesmo ano a procissão fluvial. Da Moita para o Convento de Chelas, onde a estátua permanece uma noite, e dali para Atalaia. Em causa estava não só o reacender de uma tradição antiga, como a sobrevivência dos barcos tradicionais do Tejo, um património ostracizado pelo Estado que o professor e o Centro Náutico da Moita queriam trazer para a agenda das prioridades do País.

O CLARIMProfessor, porquê esta sua paixão pelas regatas das canoas do Tejo?

Fernando Carvalho Rodrigues – As canoas são o último dos elementos onde a natureza está em equilíbrio com a natureza profunda do homem português. A canoa, o homem português e o seu ambiente. A terra, a água, o ar, a luz e o sagrado deste estuário. Que visto do espaço parece o útero de uma mulher onde nasce e é aconchegada a vida. As canoas são isto. É o último lugar onde o homem português esteve com o seu equilíbrio. Pelo que atrás fica dito, qualquer desculpa é boa para andar de canoa.

CLO homem português ainda é feliz?

F.C.R. – Sim, porque é ele próprio. Ferozmente pobre e ferozmente independente. Nesta margem sul, homens simples e humildes foram sempre, e quase sem se darem conta, centros de resistência à manutenção daquilo que é o saber português. O saber fazer cascos fantásticos de embarcações que realizaram as Descobertas. Até há pouco tempo essas canoas e fragatas corriam todos os dias. Entretanto, na margem norte, foi-se vendendo a soberania da Pátria aos dinheiros da União Europeia e com isso foi possível comprar muita fibra de vidro… As elites, que entretanto se venderam ao dinheiro fácil da Europa, descuram o feroz desejo de independência presente no âmago dos portugueses, porque para elas ser independente é viver de forma abastada, mas não é bem assim.

CLHá certamente entre esses resistentes descendentes de navegadores…

F.C.R. – Há descendentes de arrais e de homens que andaram no mar que faziam aquilo de uma maneira natural. As pessoas eram moços, eram sotas, eram camaradas, e um dia faziam o requerimento ao senado da Câmara Municipal de Lisboa para fazerem exame para arrais. Hoje, essa mesma câmara não tem um único cais para os barcos que eram do rio. A Administração do Porto de Lisboa, que celebrou já um século de existência, devia fazer um pedido de desculpa ao rio Tejo pelo holocausto do barco tradicional português. Foi a burocracia da Administração do Porto de Lisboa quem matou o barco português.

CLNão se poderia rentabilizar estes barcos do ponto de vista turístico?

F.C.R. – Quem tem barcos destes não pensa em rentabilizá-los, mas se houver alguém interessado em fazer uma festa ou um passeio com certeza que haverá disponibilidade para tal. Nós fazemos isto por prazer e querer passear o ideal de ser português que é, como já disse, ferozmente pobre e ferozmente independente. Foi com essa postura que foi feita a descoberta e inventada uma língua para o mundo, não foi vendendo soberania por um prato de lentilhas.

CLAcha então que a entrada para a Europa foi prejudicial para Portugal?

F.C.R. – É preciso não esquecer que temos mil anos de história. Como em todas as coisas nós entrámos na Europa e, se for caso disso, voltamos a sair exactamente com a mesma alegria, que é a alegria de sermos portugueses. A Europa é o que está a dar agora, e por isso há que empenharmo-nos nela a sério sem nunca esquecer que existe um fundo português que não se vende. E esta é uma reflexão que urge fazer pois pode dar-se o caso de estarmos perante um perigosíssimo tipo de esquizofrenia que, sempre que se manifestou entre nós, resultou numa guerra civil. E essa esquizofrenia de que falo não passa do confronto entre essa Nação ferozmente independente e um Estado que se comporta como se fosse um protectorado.

CLEm relação a quem?

F.C.R. – A toda a gente. Mas convém salientar que a subserviência vem do Estado e nunca das pessoas que constituem a Nação. E essa esquizofrenia é perigosíssima, porque basta que o dinheiro que agora compra deixe de comprar para haver uma guerra civil. Aquilo que vemos aqui no Tejo é uma afirmação de independência.

CLAcha que o português demonstra estamina, estrutura para dar a volta à actual situação?

F.C.R. – Sempre virou, mais recentemente, nos anos 60, com a imigração. A mudança não se deu em 74, mas sim com a partida para o mundo inteiro dessa massa emigrante. Curiosamente, hoje há quase tanta gente a emigrar como havia na década de 60. E não é, ao contrário do que se diz por aí, por não termos aproveitado os fundos estruturais que vieram da Europa. Com eles demos muito boa formação à nossa juventude, só que ela está a imigrar. O País funciona um pouco como as escolas de formação de futebol do Sporting.

CLSerá que o destino do português é o de fazer as malas permanentemente?

F.C.R. – O destino do português e ser português em qualquer parte do mundo.

CLMas porque é que Portugal continua tão pobre, endemicamente pobre?

F.C.R. – Nem sempre foi assim. O problema é que, ciclicamente, confrontamo-nos com essa tal esquizofrenia entre Estado e Nação, mas em crise toda a gente está, já que ninguém, do mais pobre ao mais rico, está satisfeito com o que tem. O mais grave continua a ser a descarada venda de soberania e o óbvio descurar nos atributos fundamentais do Estado, que são os Negócios Estrangeiros e a Defesa. Esses é que são os atributos do Estado, não é o fazer escolas ou coisas do género. Nessas áreas sociais a gente sabe tomar conta uns dos outros.

CLO professor é monárquico?

F.C.R. – Tenho vastas simpatias pela instituição monárquica. E isto, porque a monarquia simboliza numa pessoa as qualidades e defeitos de uma Nação. E nós devíamos ter simbolizado numa dinastia a permanência da Nação. Agora isso da Nação ir a votos, é coisa que me custa a aceitar.

CLMas não o incomoda o facto de na monarquia não haver o elemento democrático, o elemento da escolha?

F.C.R. – As eleições democráticas justificam-se para a escolha de um Primeiro-Ministro, de um parlamento, para a organização do Estado, agora para a escolha do representante da Nação considero-as despropositadas.

CLConsidera que o povo português tem um desígnio específico?

F.C.R. – Sim. Sempre fomos um povo único, uma espécie de eixo da roda. Com um milhão de pessoas fizemos a descoberta. Quando acabar esta civilização e se souber dela tanto quanto se sabe da egípcia, os garotos da escola vão aprender que foram os portugueses quem demonstrou ao mundo que só existe um oceano e que é possível ligar toda a humanidade por estradas do mar. E estradas só as há de quatro tipos: as estradas terrestres dos romanos, as estradas do mar dos portugueses, as estradas do ar dos americanos, e as estradas do espaço exterior dos russos. O primeiro retrato da humanidade surge num biombo namban hoje exposto no Museu Nacional de Arte Antiga. Estão, junto à Nau do Trato, os negros, os chineses, os árabes, pessoas com óculos, o que era uma novidade da época, e os seus anfitriões, os japoneses, que até à nossa chegada viviam isolados no seu país.

CLEntão isso do Quinto Império tem sentido?

F.C.R. – Ser falado depois de uma civilização acabar, será que há maior império que esse?

Joaquim Magalhães de Castro

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