Os monteses e aguerridos Bhils
Monserrate chama a atenção para a extrema densidade do arvoredo e o acidentado terreno, “notável pelas suas selvas profundas e penhascos íngremes”. Uma topografia assim propiciava ataques de ladrões, e num desses ataques lá se foi à vida um dos guardas do legado sem que nenhuma vingança pudesse ser concretizada, como amargamente lamenta o sacerdote. Ora, os ditos larápios eram os legítimos habitantes daquelas montanhas, “adoradores de fantasmas”, pelos vistos, “governados por três reis, dos quais um é o mestre dos outros dois e é como se fosse seu imperador”.
Referia-se o nosso padre aos bhils, o terceiro maior grupo tribal da Índia, amplamente disperso pelo território e que totaliza hoje dezoito milhões de almas. Grupos étnicos de língua indo-ariana, os bhils rebelaram-se em diversas ocasiões durante o período colonial britânico tendo sido por isso classificados, por lei datada de 1871, juntamente com uma série de outros grupos sociais indianos, como “tribo criminosa”, ameaça ao Império, e, como tal, passível dos seus membros serem aleatoriamente capturados, torturados, mutilados ou até mesmo mortos pelas autoridades. Mas o seu historial de resistência vem de longe…
Os bhils estavam constantemente em guerra, como relata Monserrate, e “quando uma de suas tribos é pacificada e um tratado é feito com os mogóis, as outras duas tribos continuam a guerra, e frequentemente derrotam seu grande inimigo”. Ocasionalmente, tais batalhas acabavam num empate técnico; mas jamais puderam infligir-lhe os mogóis uma derrota decisiva. É que esse povo de montanha – a quem o padre adjectiva de “bárbaros”, “degradados”, “viciados em banditismo”, “extremamente ferozes”, “intratáveis”, “ávidos por despojos” e “obstinados” – praticava a guerrilha tendo como única arma o arco de bambu e as flechas curtas com pontas de ferro enferrujado. Dispensavam modernices como a cavalaria ou a artilharia; aliás, não tinham meios para isso, tirando proveito das defesas proporcionadas pelos caprichos da natureza que eles iam reforçando com valas e paliçadas. Atentem a esta descrição, verdadeira súmula digna de um manual de táctica de guerrilha: “Atacam o inimigo depois se emboscarem em matagais e lugares espinhosos. O seu ataque pode ser directo ou dissimulado; evitando sempre a exposição directa. A extrema estreiteza dos trilhos e os penhascos íngremes dos dois lados permitem que um punhado deles seja capaz de manter o inimigo à distância. Se apesar de tudo um ataque determinado é desferido sobre eles, se vêem que não o podem rebater, escondem-se na selva densa e escarpada”.
A comitiva chegou a Sendhwa quatro dias depois e acerca desta cidade nada nos conta Monserrate, até porque não existia ainda o imponente forte construído na passagem do Século XVII para o Século XVIII e em cujos intramuros foi ilegalmente erguido, já no presente século, um templo que glorifica a prática proibida do Sati! Um típico caso de retrocesso civilizacional em nome de uma pretensa liberdade religiosa. Canhões com inscrições distribuídos ao longo das barbacãs e estátuas de deuses hindus esculpidas nas paredes internas, visivelmente vandalizadas, sugestionam presença anterior ao domínio islâmico. Por identificar fica a principal cidade dessa região, “na qual o imperador desses monteses reside”, e que o jesuíta diz chamar-se Avazus, tal como as montanhas. Monserrate referencia a propósito a muralha da cidadela, com um “circuito de paredes realmente grande”, e o casario composto por cabanas “muito mesquinhas e miseráveis”.
Ultrapassadas as montanhas e os desfiladeiros, chegou o séquito a Surana, hoje como naquela época, local sem importância pois dele não nos dá o viajante qualquer elemento, optando por falar de um profético eclipse lunar que ocorreu nesse 31 de Janeiro, curiosamente na mesma altura (soube-o António um ano depois) em que morria “o piedoso e devoto rei Henrique de Portugal, o real pontífice”. Por ironia do destino, o monarca cardeal perecera no dia do seu aniversário, prenúncio das provações e sofrimentos que sobrevieriam em Portugal, ou seja, a perda da independência em 1580. Já quando nascera Henrique, o distrito de Lisboa embranquecera de neve, facto raríssimo, como bem se sabe.
Não muito longe de Surana corre o imponente rio Narmada, fronteira natural entre o Norte e o Sul da Índia. Fluem as suas águas para Oeste ao longo de quase mil e 500 quilómetros antes de desaguar no Mar da Arábia, a uma trintena de quilómetros da cidade de Baroch, no Século XVI próspero porto marítimo que bem cedo atraiu os aventureiros e mercadores portugueses fascinados pela sua magnificência e os nativos tecelões “que produziam o melhor pano do mundo”. Nota Monserrate que na época das monções o leito largo e profundo desse rio enchia-se de água lamacenta, “que corre rapidamente”, de modo que só podia ser atravessado numa ponte ou de barco. Mas estávamos em Janeiro (Monserrate chama-lhe Verão) e nessa altura passava-se bem a vau. Era tal a clareza das águas que se avistavam os peixes e as tartarugas, e até se podiam contar os seixos mais pequenos, chamando ainda a atenção o nosso atento padre para os espessos tufos de manjerona que cobriam as margens.
Joaquim Magalhães de Castro