PRIMEIRAS MISSÕES CATÓLICAS NO NORTE DA ÍNDIA – 8

PRIMEIRAS MISSÕES CATÓLICAS NO NORTE DA ÍNDIA – 8

O forte de Rander e a cordilheira de Satpura

Surate era à época concorrida urbe mercantil valendo-se de um ancoradouro seguro, uma vez que o rio se estendia, fundo e largo, desde a foz até às malhas da cidade. Local ideal para que a caravana se abastecesse de camelos e mulas para o carreto de mais provisões e mais mercadorias. Atingida a auspiciosa data, o embaixador muçulmano ordenou que se montasse acampamento junto aos portões da cidade, tendo sido anunciada a partida para o dia seguinte, 24 de Janeiro. Para gáudio, há que dizê-lo, dos nossos padres, ansiosos por chegar o mais rápido possível à corte de Acbar. E que eles acreditavam piamente na sua conversão! Porém, seria curta a jornada do dia a seguir. Uma milha tão só, ao longo do rio Tapi e até Rander (denominado Raynel pelos portugueses), povoação fronteira a Surate, rodeada por uma reputada fortaleza.

Compara Monserrate a oposição geográfica Surate-Rander com a de Abydos-Sestos, cidades da Trácia antiga separadas por um simples fio do Mediterrâneo. Tradicional centro jainista, Rander transitaria rapidamente para as mãos dos mercadores muçulmanos que a tornaram próspera. Prosperidade entretanto declinada devido à ascensão mercantil de Surate e, tal como esta, Rander cedo se viu no centro de bélicos conflitos. Em 1530, após Surate, também a povoação vizinha foi alvo do ataque do capitão António de Silveira, neutralizador de toda a oposição local, apesar da “intransponível fortaleza” da qual não resta hoje qualquer vestígio, contrariamente ao forte de Surate que exibe ainda o seu portão-mor.

O segundo dia da nova etapa seria marcado por um curioso episódio que poderia ter tido consequências desastrosas. Adoentado, um dos padres (Monserrate não nos diz qual) seguia numa liteira e os seus carregadores, ansiosos para se livrar do fardo, estugaram o passo e em pouco tempo distanciaram-se do resto do cortejo. Depararam então com o governador de Surate acompanhado pelos respectivos guardas. Alguns deles, enquanto o gujarati falava com o catalão, foram ao encontro da caravana e ao aperceberem-se “da aparência estrangeira do resto da companhia, caíram sobre eles de forma selvagem, com a intenção de os matar a todos, gritando ‘Francos! Francos!’”. Valeu as prontas intervenções do governador e do emissário. Lestos, vindos de direcções opostas, contiveram o tumulto “antes que um único muçulmano fosse morto pelos portugueses”. Garante Monserrate que se um deles tivesse morrido, todos eles pereceriam também. Ora, este episódio dá a entender que seguia na caravana muita gente de aspecto ocidental. Que alguns deles eram portugueses – soldados ou aventureiros, muito provavelmente – di-lo claramente Monserrate. Mas não nos diz se havia gente de outras nações. Arménios, por exemplo, frequentemente confundidos com os portugueses. Nada mais especifica o nosso diarista.

No dia seguinte, a comitiva acampou nas proximidades de mais um forte, este construído com os destroços de alguns templos hindus arrasados pelos muçulmanos. O facto merece do padre este infeliz, embora compreensível à luz da época, comentário: “Tal destruição teria sido uma acção louvável se muitas de suas outras acções não tivessem sido tão abomináveis”.

Durante a estada nas margens do Tapi, Monserrate teve oportunidade de assistir a uma conhecida cerimónia religiosa hindu através da qual os devotos expiam os pecados dos anos anteriores. Um deles, semi-despido, raspou o interior de uma casca de coco é encheu-a com óleo, colocando depois um pavio. Assim, com a lamparina acesa na cabeça, entrou no rio, deixando-se submergir lentamente até que a candeia, apanhada pela corrente, foi arrastada. Desse modo se considerou purificado dos seus pecados. O festival em questão, Ratha Saptami, “é chamado pelos hindus de Satamia porque é realizado no sétimo dia da lua do décimo primeiro mês, que, segundo eles, é Janeiro”.

A caravana rumou depois a norte, para o interior, abandonando a margem do Tapi, e ao nono dia de viagem chegou a Sultanpur (“a cidade do rei”, literalmente), desvanecida para sempre dos mapas por obra e graça dos conflitos internos, como tantas outras. Aqui foi a vez dos muçulmanos “realizaram os seus sacrifícios”, motivo para uma estada de três dias por decreto do embaixador. Ademais, esperava-os um osso duro de roer: a travessia da cordilheira de Satpura, que Monserrate apelida de Avazus, dizendo-nos que ela se estende “por 75 milhas a leste do mar e tem 16 milhas de largura”. Na verdade, é muito mais larga e longa do que isso. Estende-se por diversos Estados e acolhe dentro da sua área diversos parques naturais e reservas de tigres. Os viandantes seiscentistas apenas lhe tocaram na ponta oeste. E mesmo assim tiveram de percorrer difíceis e estreitas veredas que obrigavam camelos e mulas a seguir em fila indiana, tendo os homens de levar as carroças aos ombros, tão apertados eram os trilhos!

A maior parte da cordilheira de Satpura – outrora povoada por elefantes, leões e chitas asiáticas – tem sofrido um desmatamento gradual nas últimas décadas, embora permaneçam intactas extensões significativas de floresta que permitem o habitat natural a várias espécies em risco de extinção, incluindo o tigre de Bengala, o gauro (bisonte indiano), o dhole (cão selvagem), o urso-preguiça e diversos tipos de antílopes indianos.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *