PRIMEIRAS MISSÕES CATÓLICAS NO NORTE DA ÍNDIA – 23

PRIMEIRAS MISSÕES CATÓLICAS NO NORTE DA ÍNDIA – 23

A fronteira de Alexandre, o Grande

Depois de Deli, próxima etapa, Sonipat, pequena mas mais afamada que muitas das distintas urbes, devido ao fabrico local de todo o tipo de armas brancas, “exportados para as diferentes partes do império”. Indústria possível graças à abundância do minério de ferro extraído nas encostas vizinhas dos Himalaias. Por essa altura, Acbar apreende, pela terceira vez, cartas comprometedoras trocadas entre o seu general Shah Mansur e o rebelado rei de Cabul, seu meio-irmão, Mirza Hakim. De novo com voz de prisão, e uma vez transposta Thanesar, povoado de bramânica e mercantil gente, é Mansur enforcado às portas de Shahabad, “colhendo assim a recompensa adequada de sua infidelidade e traição”.

Os habitantes das cidades, “especialmente as mulheres”, por onde passa a comitiva enchem varandas e praças na ânsia de poder ver de perto o imperador. Por vezes, o exército é obrigado a parar devido a violentas tempestades que tornam as estradas intransitáveis devido à lama e às torrentes repentinas. Melhora a meteorologia, retoma-se a marcha; a leste, o manto branco, brilhante, das neves himalaicas. É a cordilheira de Kumaun, “onde sopra o vento frio”, cujos habitantes, protegidos por densas florestas, dão-se ao luxo de não manterem lealdade a Acbar. Nem a Acbar nem a outro qualquer soberano das terras planas. Nasce algures aí o rio Yamuna, na encosta oposta à da nascente do Ganges. Monserrate, “adoptando a linguagem dos geógrafos”, diz-nos que ficam a igual latitude, se bem que em termos de longitude, a do Ganges se situe 280 milhas mais a leste.

Assente numa vasta planície, Ambala evoca conhecida vitória de Humayun contra os aguerridos patanes. A dois dias daí a expedição monta acampamento, já na periferia de Sirhind, fronteira das “províncias de Índia e Lahore”. Larga, dividida em bairros distintos, Sirhind assemelha-se, no entender de Monserrate, “a Memphis no Egipto, que é comummente chamada de Cairo”. Destaca o nosso padre a afamada escola de medicina local cujos médicos são enviados a todo o império; e ainda a artesania em forma de arcos, aljavas, sapatos, e sandálias, artigos muito exportados. Também Sirhind se situa numa ampla campina, embelezada por bosques e jardins. Árida por natureza, a região obrigara os moradores a escavar um profundo lago artificial preenchido durante a estação das chuvas através de canais de irrigação, hoje ainda reputados. No meio do lago, nota o atento catalão, “ergue-se uma torre, aberta ao público para sua diversão” com a mais privilegiada das vistas.

Em Pael, onde acampa o exército, é informado Acbar da retirada apressada das forças de Mirza Hakim. Satisfeito, manda avisar Monserrate e este de imediato o felicita pois até então “o rei parecia estar constantemente carrancudo”, mergulhado na mais profunda das ansiedades. Nova paragem em Machiwara, nas margens do Sutlej (importante afluente do Indus) até que a construção de uma ponte de madeira fosse concluída. Menciona o nosso herói a presença nas águas do Sutlej do nativo gavial, réptil de focinho longo e delgado, “lagarto de água”, isto é, saúrio, capaz de engolir num repente homens, bois, búfalos, ovelhas “e outros animais enquanto bebem à beira do rio”. Curiosamente, em vez de optar pelo ponto cardeal oeste, pois aí se situa Lahore, Acbar dirige-se a norte, rumo aos Himalaias. Já em terras agrestes e muito frias – porém, com fortaleza para as proteger – o mogol ordena que sejam entregues a António Monserrate cinquenta moedas de ouro para que as distribua entre os cristãos presentes na corte ambulante. Demonstra assim a sua satisfação em ver-se livre do meio-irmão, que de novo enviara missiva implorando perdão, “por sua traição”, para que assim “os horrores da guerra pudessem ser evitados”. Só que entretanto pedira também que lhe fosse permitido manter os seus domínios… Ou seja, o seu pedido não era sincero, daí que Acbar optasse por continuar com a campanha. Durante dois dias segue ao longo do rio Beás, procurando vau onde possa passar. Mas antes disso, acompanhado de alguns cavaleiros escolhidos a dedo, partira para o ninho-de-águia Nagarkot (também conhecida como Kangra), atendendo a um pedido de ajuda do monarca local que fora deposto por um filho desnaturado. Ao saber da chegada forasteira, o usurpador logo se escondera numa fortaleza protegida por montanhas íngremes e inacessíveis, obrigando o mogol a regressar à base de mãos a abanar. Diz-nos Monserrate que a região produz em abundância frutas e safras “características da Espanha e da Itália, mas que não se encontram em nenhum outro lugar da Índia”.

Na realidade, a comitiva percorrerá nos dias seguintes uma região enclausurada entre os rios Ravi, Chenab e Jhelum, aquilo que Estrabão designava de Hydaspes e onde Alexandre, o Grande, após perder a batalha contra rei Poro, em 326 a.C., desistiria da sua expansão a leste, encetando o caminho de regresso à Macedónia natal. Como sempre, Alexandre aproveitou para fundar na região a cidade de Niceia, ainda não identificada. Tão pouco é possível identificar com precisão o local da batalha, devido às inevitáveis mudanças na paisagem provocadas pela inexorável passagem do tempo.

Joaquim Magalhães de Castro

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