Deli e o mito dos seus monarcas cristãos
Quatro dias após a bélica comitiva ter deixado Fatehpur Sikri, apresenta-se no horizonte a cidade de Matura, onde primeiro se manifestou o credo bramânico. Monserrate destaca o seu residente mais ilustre, o azulado Krishna, encarado, neste caso, como avatar de Vishnu. Inúmeros templos desta suprema entidade abundam pelas vizinhanças, “naquele estilo piramidal típico da Índia”, dando origem a inúmeras fábulas: a Krishna atribuem os mais extraordinários feitos. Nota o clérigo que é o local “fonte de superstições na Índia, assim como Roma foi na Europa”.
Outrora urbe grande e bem povoada, tipificam Matura edifícios esplêndidos, muralhas e abundantes ruínas, de onde sobressaem colunas e estátuas “de trabalho hábil e astuto”. Apesar da fúria proselitista muçulmana, que muitos templos anulou, de toda a Índia afluem peregrinos a um deles erguido nas margens do rio Yamuna. Só depois de raparem cabelos e barbas e mergulharem os corpos várias vezes na corrente, “para que a água lave os seus pecados”, podem os crentes entrar no retábulo eleito. Coisa de ver, mais de trezentos barbeiros aviando com destreza homens e mulheres postados nos degraus defronte ao Yamuna. Apesar da mistura de sexos, “tudo é feito com perfeita modéstia”, pois grande pecado é cometer indecências em tão sagrado lugar.
A seis milhas de Matura deparam os viajantes com um santuário dedicado a Hanuman, o deus-macaco. Nas imediações socializam centenas de símios que os crentes se habituaram a sustentar. Ao toque de um sino, pegam os ditos em armas e, “dividindo-se em duas companhias, lutam como gladiadores, cessando de novo e depondo as armas ao som do mesmo sino”. Também ao mesmo sinal se juntam para se alimentarem, duas vezes ao dia, regressando depois ao bosque onde pernoitam. Atribui tudo isto “o pobre povo” a milagre divino, quando não passa, afinal, de “um artifício dos brâmanes” que laboriosamente treinam os macacos para as assombrosas façanhas.
Deli, bela, vasta e próspera cidade, surge-lhes pela frente seis dias depois. Humayun, pai de Acbar, aqui residiu grande parte da vida e aqui conheceu trágica morte. É enorme, rodeado por coloridos jardins, o seu túmulo. Uma das esposas, “mãe do rei de Cabul”, amava-o de tal forma que passou a morar junto à lápide fúnebre, e ali o vigiou até à sua morte. Dedicava-se à oração, sustentando com esmolas quinhentos indigentes. “Fosse ela cristã”, comenta Monserrate, “teria sido uma heroína”. O catalão cita depois aforismo de certo escritor, “os muçulmanos são os macacos dos cristãos”, explicável, no seu entender, pelo hábito daqueles de imitarem a piedade dos cristãos, embora “sem receber a recompensa dessa piedade; pois eles se afastaram da verdadeira fé e da verdadeira caridade”.
Monserrate realça a nobreza dos edifícios públicos e de algumas mesquitas, sobretudo uma de mármore branco polido coberto com “uma mistura de cal com leite, em vez de água”. Erigiu-a o patane Feroz Shah Tughlaq, ao que dizem, piedoso monarca. Durante o seu consulado foram construídos abrigos junto às estradas, a cada duas milhas. Obrigatoriamente deveriam ser plantadas aí árvores de larga copa, escavados poços – para que homem e animal pudessem beber – e erigidas mesquita para que todos orassem. Plantou Feroz árvores ao longo de avenidas, em ambos as bermas, “para que os viajantes cansados encontrassem reconforto”. Fruto da sua iniciativa surgiriam pontes sobre os rios e canais, pavimentos nas estradas e entulho de sobra para drenar as terras pantanosas. Em suma, o distinto patane empenhou-se em contribuir para a conveniência pública, aproveitando, no processo, para cultivar a sua própria glória.
Não muito longe de Deli, mandou Feroz erguer um belo palácio, “com uma coluna de mármore de nove metros de altura e um metro e meio de espessura mesmo em frente”. Daí mandou escavar uma passagem subterrânea que lhe permitia escapar da corte e “dos negócios do Estado”. E a verdade é que com frequência o fazia, desfrutando a luxuosa solidão dos monarcas sempre que quisesse. Muitas histórias se contam acerca das suas boas acções, as quais – a serem verdadeiras – lhe garantiriam um lugar no céu, “se ao menos fosse ele cristão”, como ressalva o jesuíta.
Deli, protegida por bem apetrechada guarnição mongol, é então habitada por abastados brâmanes donos de sumptuosas residências, construídas em pedra e cal. Graças a Humayun, apreciador da bela arquitectura e das obras públicas, as ruas desta cidade, “sobre as quais frondosas árvores projectam amplas sombras”, são mais imponentes do que as de qualquer outra cidade muçulmana. Monserrate admite que lhe faltam as palavras para descrever a beleza dos parques – grande é a profusão de frutas e flores, “pois o clima é ameno” e as terras ao redor de Deli “são muito ricas e férteis” – encarregues de embelezar as áreas residenciais em ambas as margens do Yamuna, cujas águas correm a leste da cidade, que o padre catalão erradamente acredita ter outrora estado sob o domínio de monarcas cristãos. Demonstram à exaustão a sua antiguidade, as torres, paredes e os muros derrubados que pontuam o espaço urbano naquela que era já conhecida como “velha Deli”.
Joaquim Magalhães de Castro