PRIMEIRAS MISSÕES CATÓLICAS NO NORTE DA ÍNDIA – 21

PRIMEIRAS MISSÕES CATÓLICAS NO NORTE DA ÍNDIA – 21

Um verdadeiro tratado sobre os elefantes

Monserrate, antes do relato propriamente dito da campanha de Cabul, começa por nos dizer como fora feito o recrutamento e quem compunha o vasto exército de Acbar: “Cinquenta mil cavaleiros, quinhentos elefantes e camelos lutadores e um número quase incontável de infantaria”. Havia-os, os cavaleiros, de diversas etnias. Uns muçulmanos, outros hindus. Persas, turcomanos, uzbeques, baluchis, patanes, gujaratis. Os das diversas tribos mongóis e “gente de Herat e do Hindukush” usavam tácticas de luta comuns: infalíveis no tiro de arco em pleno galope. Os baluchis, homens do deserto, ao invés de cavalos montavam camelos, recorrendo também ao arco e à flecha. Já os gujaratis e os maratas optavam pelos póneis, “quase do tamanho de burros”, enfrentado o inimigo com “lanças curtas (ou melhor, dardos) e escudos leves”. Deles se dizia saberem como morrer mas não como lutar. Não obstante eram, talvez devido a essa característica kamikaze, os preferidos do imperador. Protegido por tão variada naipe de guerreiros, ninguém ousava enfrentar ou arquitectar a sua morte, embora Acbar fosse considerado por muitos muçulmanos “um infame fora da lei”.

Concentra-se depois Monserrate no comportamento dos elefantes, em número extraordinário “nas cidades e acampamentos reais”. Se competia às fêmeas carregarem a bagagem, aos machos sobrava-lhes o campo de batalha, “equipados com uma armadura de defesa, usada também para fins ofensivos”. Com as suas trombas pegavam os inimigos, derrubando-os ou lançando-os ao ar, pisoteando-os depois, até à morte. Mas nem sempre os machos eram assim violentos – “loucos durante três meses de cada ano”, ao ponto de poderem matar os seus tratadores, “sendo por isso mais úteis para a peleja durante este período” –, quando acompanhados das respectivas fêmeas mantinham-se quietos e inofensivos. Se deles necessitava o seu senhor uma renovada fúria, “por causa de uma batalha eminente”, bastava dar-lhes carne de gato misturada na habitual ração. Eram alguns deles treinados para carregar peças de artilharia no dorso, tornando-se assim indiferentes à estridência dos disparos. Cinquenta desses paquidermes protegiam em permanência a rectaguarda do exército.

Monserrate, sempre muito observador, descreve-nos o comportamento do animal. Nota que ele se acostumava à voz dos tratadores – assim o quisesse poderia este ensiná-lo até a dançar –, sendo capaz de amarrar e desatar nós, empurrar objectos, levantá-los, virá-los e até recolher pequenas moedas do chão. Qual especialista da vida animal, Monserrate descreve o dia-a-dia das manadas paquidérmicas nas florestas sob a liderança dum macho que marchava “como um verdadeiro general no seio das suas forças”. Acbar esforçava-se ao máximo para que todos fossem alimentados adequadamente e exigia que trouxessem à sua presença os melhores exemplares. Citando Estrabão e Plínio, indica o período de gravidez das fêmeas, “normalmente de oito meses, mas às vezes de seis ou dez”, o período de amamentação e a longevidade do bicho – chegavam a viver duzentos anos –, indicando como contrapartida a sua frágil saúde, “não podendo ser curados em caso de doença”. Os filhotes, “tão grandes quanto um porco”, eram treinados a partir dos dez anos, havendo alguns propositadamente alimentados “com carne humana, a fim de torná-los mais selvagens contra o homem”. Extraordinária a capacidade de destruição, se rivais, dos ditos elefantes. Atacavam-se à primeira vista com grande ferocidade, lançando-se de cabeça para baixo, jamais olhando para o alto. Destaca Monserrate a propósito o pavor do elefante face ao rinoceronte. Se este via tremia aquele, encolhendo-se de tromba na boca. Bem sabia que o rinoceronte o atacaria por baixo, pronto a enterrar-lhe o corno afiado na barriga. Dá-nos conta ainda o jesuíta do receio do elefante em relação às formigas, e ainda mais aos ratos; e do seu entusiasmo pela água, tanto “quanto um búfalo, um porco” ou qualquer outro.

Para que tão grande animal pudesse ser domesticado e treinado, Deus – “o Criador de todas as coisas naturais, que fez tudo por causa do homem, e fez o homem também para que ele lhe obedecesse” – fez o elefante fraco, munindo-o de dois calcanhares de Aquiles. O primeiro: o não suportar ter as pernas amarradas. O segundo: serem o seu tronco e a sua testa extremamente sensíveis. Ainda hoje, infelizmente, constatamos a tortura a que são sujeitos centenas e centenas de elefantes, sacrificados à indústria do turismo. Facilmente os vemos guiados e controlados a golpes de gancho, aplicados com grande força nas respectivas testas. Se não obedece ao anzol, prende-o pelo pé o tratador, com uma longa corrente, a um poste enterrado no chão. “Sempre que recebe uma pancada na cabeça, retira-se imediatamente; se o ameaça fogo, busca segurança fugindo mais rápido do que o vento sudeste”. Por isso, sempre que Acbar assistia a um espectáculo protegiam-no dos elefantes diversos guarda-costas empunhando ganchos afiados fixados em cabos compridos e bombas cheias de enxofre em pó. Caso algum elefante ousasse atacar o imperador, de imediato eram as bombas atiradas à arena, “onde explodiam ruidosamente”.

Joaquim Magalhães de Castro

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