Os mestres espirituais do dharma
Cinco conjuntos de caves jainistas com dezenas de imagens de tirthankaras dos mais diversos tamanhos, algumas colossais, foram escavados na encosta da colina de Gawlior. É um tirthankara – convém explicar, antes de irmos mais longe – mestre espiritual do dharma, “o caminho correcto”. Ou seja, alguém que tendo ultrapassado o ciclo da morte e do renascimento abre caminho para os demais. No fundo, uma espécie de Buda. Aliás, a sua figura ao Gautama extraordinariamente se assemelha.
Enquanto sobem para o palácio real, estupefactos se vão mostrando os nossos padres ao serem confrontados, “esculpidas na parede do vestíbulo de um templo”, com treze dessas rudes estátuas. Conclui António Monserrate que a do meio, “a julgar pelo estilo e posição”, representa Jesus Cristo, e as seis à direita e demais seis à esquerda, os Apóstolos. Admite contudo o catalão não se poder definitivamente provar “quem as estátuas se destinam a representar, uma vez que carecem da insígnia característica das imagens sagradas cristãs”. Sustenta a apressada conclusão com o facto dos muçulmanos não mostrarem “nenhuma reverência por tais imagens, mas as maltratam e quebram”, estando por isso à partida excluída a sua autoria. Na verdade, em 1527, seis décadas após a conclusão deste ofertório ao ar livre, seriam desfigurados e profanados os ditos baixos relevos por ordem do imperador mogol Babur, que no seu livro de memórias menciona o corte de uma “rocha sólida do Adwa [Urwa]”, onde foram esculpidos ídolos de diferentes tamanhos, destacando um, na parte sul, “que pode ter cerca de 40 pés de altura”. Estavam nuas essas figuras, “sem nem mesmo um trapo para cobrir as partes pudendas”, inseridas numa paisagem extremamente agradável, sendo o único senão os tais “ídolos ao redor”, e por isso mesmo ordenara Babur a sua destruição. Na realidade, foram apenas mutilados. Decepados rostos, membros e órgãos sexuais, que séculos depois a comunidade jain local restauraria.
Ora, o templo mencionado por Monserrate é certamente a cave mais conhecida e visitada do complexo. À entrada apresentam-se apenas sete estátuas e em nenhuma delas há qualquer semelhança com personagens da Cristandade. Poder-se-á depreender, portanto, que, como desconhecia o que tinha pela frente, Monserrate forçou a interpretação da coisa, até porque acreditava piamente ter sido outrora a região habitada por cristãos. Como ele diz, “infelizmente, derrotados em várias batalhas pelos muçulmanos, e tão efectivamente esmagados que toda a memória do Cristianismo desapareceu da mente dos homens”. Semelhante remate levaria Alexander Cunningham, engenheiro do exército britânico nomeado em 1861 para o recém-criado cargo de agrimensor arqueológico da Índia, a perguntar mais ou menos isto: “Se um missionário sério e educado assim concluiu, que credibilidade nos podem merecer os mirabolantes relatos trazidos para a Europa por aventureiros analfabetos?”. Certamente não lera o “major” a totalidade do Itinerário, recheado de histórias do género, nomeadamente a dos “reis cristãos” que governavam Deli antes da invasão dos mogóis.
Faz de seguida o nosso missionário uma série de considerações morais acerca da impossibilidade, por simples teimosia, de expiarem os seus pecados os maometanos, feitos “tolos pelas artimanhas, enganos e truques mentirosos de patifes sem valor”. Era o caso de um certo vilão “chamado Baba Capurius, seguidor de Maomé”, que com a descoberta de uma bebida à base de “bolbos de papoila embebidos em água” reavivara o consumo local, caído em desuso, de substâncias inebriantes. Curiosa, no mínimo, esta acusação, já que Baba Kapoor (assim era conhecido), de seu verdadeiro nome Abdul Gafur, falecido em 1571, inicialmente soldado de profissão, dedicara grande parte da vida ao filantropismo, fornecendo água às viúvas e aos pobres. Coloca-o o historiador mogol Abul Fazl num patamar pouco abaixo do topo no rol classificativo dos eruditos da época. Era “um daqueles que prestam pouca atenção ao mundo externo, ouvindo antes o coração”, adquirindo com essa sua atitude um vasto conhecimento. Em contraponto, critica-o Monserrate por ele acreditar que a felicidade perfeita consistia “na ausência de todos os sentimentos” e na atenuação dos males da carne e dos problemas da mente. Por meios artificiais, se preciso fosse, pois – assim o entendia o padre – “estamos mais sujeitos aos estímulos dos sentidos quando nos encontramos num estado de semi-insensibilidade”.
Ciente dos perigos do ópio e do “risco iminente de morte prematura” dos viciados nessa droga, Baba Kapoor arranjara forma de atenuar os nocivos efeitos da mesma, inventando um preparado muito seu. Para quem renega com tão veemência tal droga, Monserrate parece conhecer bem o processo de fabrico. Dá-nos todos os pormenores! Vamos lá à receita. Primeiro havia que extrair o suco dos bolbos, previamente amadurecidos; depois, retiravam-se dele as sementes colocando o invólucro na água até que o líquido adquirisse a cor do vinho. De modo a remover as impurezas era este passado para uma outra vasilha através “um filtro do mais fino linho”, estando de seguida a decocção pronta a ser consumida. Quem a ingeria ficava profundamente adormecido, “com a cabeça entre os joelhos”, qual Endymion, o belo “deus do sono” da mitologia grega. Salienta ainda Monserrate que os partidários da tisana alimentavam-se apenas de leguminosas cozidas e doces, abstendo-se de comer carne, frutas, cebolas e alho, “ou qualquer coisa desse tipo”, estando absolutamente interdita a ingestão de óleo, “o que é fatal após o ópio ou esta bebida”.
Joaquim Magalhães de Castro