Pregadores contra estalinistas

Realidades quirguizes.

Junto a um pequeno cineteatro do centro de Bishkek, capital do Quirguistão, congregara-se uma pequena multidão domingueira. Convencido de que haveria alguma “matinée” artístico-cultural, ao jeito do socialismo de outrora, segui-a até ao interior da sala de espectáculos. No palco afinavam-se guitarras e testava-se a dureza das peles do bombo da bateria. Uma rapariga com um colorido crachá na lapela no casaco e olhar atento indicou-me uma cadeira. Perguntei-lhe: «– Concert?» Disse que não com a cabeça e depois, com um breve movimento de lábios, quase num murmúrio, esclareceu-me: «– Church». Tarde demais. Ia assistir, quisesse ou não, a um serviço religioso da Igreja de Cristo, congregação que, apenas em dois anos, reunira já à sua volta mais de seiscentos fiéis, só em Bishkek.

A cerimónia iniciou-se e terminou com cânticos – muito ao estilo dos “gospel” negros norte-americanos – acompanhados com um suporte musical que namorava menos mal a cantilena. O refrão era projectado em letras garrafais num pano, ao fundo do palco, para que todos pudessem ler. Até aí tudo bem. Teve até a sua graça. Mas, como diz o ditado popular, “no melhor pano cai a nódoa”. E a nódoa dessa manhã foi a empenhada intervenção do pregador. Um sujeito de meia-idade, bem-parecido, fato cinzento e gravata discreta, cabelo penteado para o lado direito, pose e gestos estudados ao pormenor, como convém, assistido por quatro mulheres de indumentária clássica e cabelo oxigenado que entoavam canções e ensinavam o gesticular que a assistência devia repetir. Nas coxias, os seguranças, costados bem constituídos e crachá vermelho ao peito, olhavam as massas com ar sério e inquisidor.

«– Ele não queria ser pregador», dizia-me no final da função uma louraça russa que se exprimia em Inglês com o tal acento americano forçado. «– Mas o poder divino escolheu-o e ele teve de aceitar». Mas que eu não tivesse ilusões. A escolha nada tivera a ver com o seu grau de maior ou menor santidade. Andrei – assim se chamava o pregador – fora um grande, grande pecador antes de ter sido enviado de Astana, capital do vizinho Cazaquistão, para propagar a palavra do Criador em Bishkek. Pecador ou não, o certo é que a plateia parecia ter aprendido bem a lição. Via-se que havia ali muitos Domingos de ensaio em cima.

O evangélico – sempre em Russo – discursou, orou e mandou-os repetir fórmulas durante mais de uma hora e sem um minuto de intervalo que fosse para tomar fôlego. Rendida ao discurso, a população bebia-lhe as palavras sofregamente. Havia quem tomasse notas em cadernos diários bem tratados e havia quem vertesse lágrimas de emoção. Confrontado com semelhante histerismo, procurei, em vão, um olhar de São Tomé, um Descartes, um positivista, um entusiasta dos sábios cépticos do círculo de Viena, um espírito crítico que fosse. Nada. Os fiéis pareciam tirados a papel químico.

Russos, quirguizes, coreanos. Homens e mulheres, novos e velhos, como que hipnotizados, olhavam em frente e repetiam o que o pregador dizia com uma devoção extraordinária (o murmúrio em lengalenga era por vezes tão fanático que me chegou a assustar), de olhos cerrados, sorriso de felicidade no rosto, braços atirados para o ar que, às vezes, lembrava o ave romano, outras a saudação nazi, outras ainda a pose de oração dos muçulmanos. Enfim, uma caldeirada com todos. À saída, as pessoas atropelaram-se para comprar uma cópia da Bíblia – versão Igreja de Cristo – com medo que esgotasse. Até lá vi um velho quirguiz, de kalpak tradicional na cabeça, com um exemplar na mão. Uma mão que, ao cabo de todos estes anos, parecia mais pronta a tomar a rédea dum cavalo do que a folhear as páginas de um novo credo.

Apesar de, teoricamente, o Quirguistão ser um país islâmico, as conversões não paravam de acontecer, e a Igreja de Cristo não era a única responsável pelo fenómeno. Influentes grupos religiosos, como os Hare Krishna, os Bahá’í e a Família também já tinham destacado as respectivas legiões de pastores para a região. É que o rebanho em toda a antiga URSS continuava ainda muito, muito, mas muito tresmalhado.

Doulat Karim aparentava ser muito mais velho do que na realidade era. Tinha apenas 32 anos e coxeava desde os 27, devido a uma trombose que lhe arruinara a carreira militar de piloto da Força Aérea. Voar, a sua grande paixão, ficara para sempre arquivada nos álbuns de fotografia do tempo de tropa, cumprida em Leninegrado e em Perm, na Sibéria, que ele não se cansou de me mostrar.

Doulat foi direito ao assunto: «– Ich bin communist». O pouco alemão que sabia era suficiente para expressar admiração por Estaline e desprezo pela máfia «que tem o nosso país nas mãos» e cujas jogadas tinham dado cabo da assistência social, fazendo com que reforma de invalidez que recebia fosse insuficiente. «– Agora é o salve-se quem puder», concluiu com ar zangado.

A sua mulher, Arzegul, formada em Medicina em Leipzig, na Alemanha de Leste, e que era professora de Alemão no liceu local, preparou-nos um delicioso “polau”, esse arroz com cenoura cozida sobre um estrugido oleoso que tantas vezes me tinha deliciado em Kashgar, enquanto o marido não se cansava de me mostrar as fotos dela com os seus colegas do curso – russos, alemães e de outros países do Leste europeu. Viam-se também muitos africanos. Ainda hoje, estudantes dos países subdesenvolvidos tiram cursos superiores nas cidades da antiga União Soviética dando-lhes um aspecto mais cosmopolita.

Muitas das fotografias tinham sido tiradas junto a monumentos de Lenine, na companhia da mãe – «teve doze filhos e, por isso, foi condecorada com a medalha de heroína do socialismo» – e do pai, dirigente de um sovkoze. O casal Karim – com um filho e uma filha em idade escolar – acabara de mudar de casa, mas isso não afectava em nada a sua natureza hospitaleira. Antes pelo contrário.

Nesse início de Outubro, os 2500 metros de altura registados em Naryn significavam noites gélidas, eficazmente neutralizadas pela energia eléctrica produzida na barragem local, já que o gás dos oleodutos da Sibéria nunca ali tinha chegado. «– Dantes tudo funcionava a carvão», fez questão de informar Doulat, indicando a salamandra gigantesca de formato cilíndrico incorporada na parede, que, sem utilidade, passara a fazer parte da mobília decorativa.

Joaquim Magalhães de Castro

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