Post Scriptum

1. Na minha última crónica de 2018, dedicada à época natalícia, imaginei que escrevia uma carta ao Menino Jesus, onde lhe pedia prendas, como fazia quando era criança.

Não pedia nela nem um novo smartphone, nem novos sapatos Nike, nem uma playstation, nem um pequeno drone, mas lembrando-me constantemente da minha idade, pedi prendas próprias dela.

E Jesus respondeu-me, dando-me o mais precioso dos presentes: este novo ano, para continuar a escrever-Lhe, em jeito agora de post scriptum.

Quer dizer: é como se eu continuasse a redigir a minha carta ao Menino Jesus, mas agora não como petição. Antes como reflexão geral sobre o ano que começa.

E o Menino Jesus entrará em cena quando quiser, porque Ele nunca pede licença para aparecer. Essa rebeldia veio-Lhe certamente de quando desobedeceu aos pais e ficou no Templo entre os doutores, completamente ignorantes aliás de Quem estava perante eles.

2. 2019 chegou pois. Passaram já as idas aos centros comerciais para as últimas prendas, passaram as duas consoadas, a do Natal e a do Ano Novo, e os familiares e amigos, com quem nos reunimos nessas datas festivas, regressaram já, como nós, às suas rotinas.

Fica agora e só a aventura dos dias do calendário a cumprir. Com o mesmo conteúdo de sempre ou quase. A educação dos filhos, a progressão nas carreiras, a gestão mais ou menos sensata da economia familiar, o projecto da viagem de férias, uma ou outra ida ao médico se necessário…

E, de resto, o mundo “acontecerá” lá fora, exterior ao círculo íntimo das nossas preocupações e dos nossos interesses imediatos. Fazemos projectos ideais, como se tudo fosse garantido à nossa volta. Até que o mundo e seus acontecimentos nos venham bater à porta.

À medida que os anos foram passando e eu ia vivendo, meditando e lendo sobre o passado, foi-se acentuando em mim a ideia de que a História nos pode interpelar a cada momento, vindo-nos cobrar o preço da nossa desatenção.

E assim passei a estudar cada época como se fosse a minha época. E eu uma pessoa comum, como sempre fui, tendo todavia a cultura como chave, para poder compreender o mundo.

Com este longo intróito, e sem ser adivinho nem prestidigitador, o que antecipo no mundo que me possa ocupar e sobretudo preocupar?

3. Desde logo, as questões relativas à paz e ao seu oposto. Hoje fala-se cada vez mais de novos cenários de conflito, e até de conflito generalizado e iminente. De novas armas sofisticadas, para se responder a tais eventualidades. De orçamentos nacionais que se multiplicam de forma exponencial, vertiginosa, para preparar os exércitos para o pior.

Há mesmo Estados que estão tão obcecados com comprar o que de mais moderno se produz, pelas indústrias de armamento de outros países, que mais parecem dependentes de uma outra forma de droga. Estou a pensar em países do Médio Oriente, por exemplo… onde a fortunas familiares colossais corresponde a atracção pelos brinquedos de guerra e a anemia das respectivas instituições e sociedades, ligadas ao poder pelos laços arcaicos da generosidade do príncipe e não pelo vínculo comum da cidadania que dignifica. Mas quando essas crianças grandes, dependentes das armas, encontram um terreno livre para andarem aos tiros, ei-los felizes.

A última “brincadeira”, sinistra tragédia, que ainda dura, tem lugar neste momento no Iémen, com milhares e milhares de mortos! BRAVO!

Estamos a caminhar, mais cedo ou mais tarde, para um conflito global?, perguntam os que resistem ao fatalismo das guerras, mas não ignoram que a história se repete, na atracção que a humanidade sofre para caminhar em direcção ao abismo.

4. Um dos factores que hoje mais desestabiliza a consciência de certos governantes, no Ocidente, é não perdoarem a expectativa de se tornarem, a prazo, nos segundos ou terceiros duma lista mundial das potências, do prestígio, do mando, eles que se habituaram, por demasiado tempo, a serem os donos do mundo.

O desenvolvimento progressivo do Oriente é uma terrível injúria para esses. Não pensando que os milhões de pessoas subjugadas por uma certa ordem antiga, que muito convinha a uns tantos, eram pessoas com sonhos, com ambições, para eles e para os seus filhos.

Era mais fácil para eles imaginarem ideologias de império, com a soberba inerente da superioridade racial. De que agora se retratam semi-arrependidos, mas no fundo saudosos de quando eram… senhores.

São essas ideias de domínio que constituem os venenos da História. E de cuja competição nascem as grandes tragédias.

5. E apesar da crescente riqueza de certos Estados, da sua maior capacitação em termos científicos e tecnológicos, decresce, em ritmo oposto, a generosidade para acolher e ajudar quem precisa.

A América é poderosa? Sim, mas… a América primeiro! A Europa é rica? Sim, mas a riqueza é só para nós! As potências do petróleo têm os cofres a abarrotar? Sim, mas o dinheiro já está destinado… aos paraísos fiscais e aos outros paraísos, os automóveis de luxo, os jactos privados, os palácios resplandecentes, etc. etc….

O que fariam, aliás, centenas de príncipes, na sensaboria das suas vidas, se não fossem de vez em quando estoirar uns milhões às boutiques ou hotéis seis estrelas das capitais do mundo?

O que se está a passar com refugiados e emigrantes, nas margens do Mediterrâneo ou na fronteira norte com México não é escandaloso?

Há por vezes resquícios de esperança, com a aparição de líderes moldados noutro barro… mas ocorre perguntar: o Presidente Lopez Obrador é um presente de Natal ao povo mexicano? Como foi, por exemplo, José Mujica, o mais pobre dos Presidentes, para o povo do Uruguai?

É caso ainda para perguntar, num mundo que pensa exactamente ao contrário: donde surgiram esses líderes extraterrestres que, libertos de ambição pessoal, não compreenderam nada do “mundo que vence”? Ou compreenderam tudo antes dos outros e tiveram a coragem de escolher outro caminho?

6. A nova grande ideia de um certo iluminado, muito conhecido como líder de audiências, em espectáculos burlescos, é acabar (ou fazer definhar até à total ineficácia) as organizações internacionais onde se coordena a acção dos Governos para a solução das grandes questões do desenvolvimento.

Porque, obviamente, a esse iluminado o slogan do seu-país-primeiro coloca-o a milhas de qualquer preocupação humanitária.

7. Estou quase a chegar ao fim deste post scriptum, caro destinatário celeste. Penso em tudo o que Te pedi ou que não ousei pedir mas preciso, precisamos TODOS.

E o que é? Que nos libertes (nos salves!) das contradições de milhares e milhares de anos de História e nos restituas a liberdade original. Para voltar ao início com o pensamento puro dos primeiros tempos, onde tudo era possível CONTIGO.

Torno-me infantil pedindo o impossível, não é? Quero soluções mágicas onde só há a realidade, não é?

Mas – escuta bem – não é isto mesmo o que pedimos todos?

Carlos Frota 

 Universidade de São José

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