Porque há Natal?

Hesitei se deveria falar-vos desta Pátria amada que é o “Portugal dos pequeninos”. Tentei contar-vos mais umas das abundantes histórias que atravessam o nosso quotidiano e que nos irritam a pele pelo sofrimento que nos causam, mas não fui capaz.

Fui invadido pelo espírito de Natal. E porque esta quadra natalícia é doce, como as filhoses da minha querida avó, e ternurenta pelos sentimentos que desperta em cada um de nós, falar agora de coisas que nos arreliam é um despropósito, mesmo que seja só por uns dias.

Também já quase tudo foi dito sobre o Natal e falar sobre generalidades, repetindo frases feitas e tantas vezes ocas de sensibilidade, não é a “minha praia”.

Por isso escolhi falar sobre o “meu” Natal. Não que eu seja caso único, mas porque considero que aquilo que mais nos afecta particularmente nesta época especial de carinhosas intenções é o que é verdadeiramente sentido por cada um de nós.

Crentes ou pagãos, ricos ou pobres, saudáveis ou doentes, amigos ou inimigos, ninguém passa despercebidamente pelo calor humano que irradia o Natal, independentemente das diferenças culturais, das transformações sociais que atravessaram a nossa vida e das recordações que nos marcaram no calendário dos tempos.

Se bem que actualmente as nossas memórias são medidas em “bites” e as prendas natalícias são valorizadas pelo “marketing” comercial, o espírito de Natal está sempre presente nas nossas histórias de vida.

Quando eu era pequenote, tal como tantos outros da mesma idade, vivia o Natal a partir do momento em que desembrulhava as figurinhas de barro que, com toda a arte possível, iriam constituir o meu presépio, montado sobre um manto de musgo, que entretanto ia apanhar no campo, mau grado o raspanete da minha mãe, ao constatar os meus sapatos cobertos de lama.

O pinheiro, comprado nas praças do bairro e enfeitado com luzinhas “piscantes”, bolinhas coloridas e fitas reluzentes, recompunha o quadro dos meus sonhos. Era Natal!

Naturalmente que o “prato principal” ainda estava para vir. Tratava-se da Ceia de Natal, com toda a família reunida e a longa (…) e enervante espera pela meia-noite, hora em que se davam as prendas, “trancadas” num dos quartos. E foi assim que vivi um episódio que não mais esqueci.

Numa dessas memoráveis vésperas de Natal e sendo eu o mais novo, o que, pelo estatuto criado pelos adultos, deveria ser o primeiro a ver as oferendas que me eram dadas, dei conta de um enorme embrulho do meu tamanho, junto ao meu sapato. Desesperadamente, corri emocionado e expectante para aquela prenda “gigante” e, atabalhoadamente, comecei a rasgar os papeis que a cobriam.

Não queria acreditar no que tinha à minha frente: um enorme cavalo de papelão, castanho, com arreios brilhantes e umas rodinhas que o faziam deslizar pelos curtos corredores da casa. O meu contentamento era de tal ordem que já não quis ver o resto das prendas que, normalmente, seriam algumas peças de vestuário, essenciais ao meu elementar guarda-roupa e algum carrinho de lata.

“Cavalguei” o resto da noite, montado no meu corcel, numa “espectacular” demonstração dos meus heróis favoritos, o Príncipe Valente e o Zorro. Até que chegou a hora de deitar e os meus pais, considerando que o cavalo era muito grande para ficar no meu quarto, resolveram colocá-lo a “pastar” no quintal.

Na manhã seguinte, saltei apressadamente da cama e fui buscar o meu equídeo de papelão ao quintal, onde tinha pernoitado, para o mostrar vaidosamente aos meus amigos.

Ao primeiro olhar, além de molhado da chuva que tinha caído durante a noite, senti-o um pouco debotado. Pouco preocupado com a “noitada” do meu cavalo, limpei-o cuidadosamente e sentei-me ofegante na sua sela.

Foi então que caí redondamente sobre o estrado das rodinhas que suportava o cavalo e chorei durante horas. O meu cavalo de papelão tinha-se “derretido”.

Para me compensar, o meu “Pai Natal” comprou-me um comboio de corda, com o qual ele brincou (…) até o estragar!!!

Foi, para mim, um Natal invulgarmente triste, mas deu-me uma lição para toda a vida: “cavalos de papelão”, tal como “tigres de papel”, não são eternos. Razão porque não os quero.

E o verdadeiro e genuíno espírito de Natal só é inteiramente sentido quando os actores principais são as crianças. Elas são a razão porque há Natal.

Luis Barreira

 

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