O nosso tempo

O papel da Igreja no sistema internacional

Este tema e temas vizinhos – como o do papel das religiões nas relações internacionais – têm motivado centenas e centenas de teses, artigos, entrevistas, debates, livros, documentários, e tudo o mais que se queira imaginar quanto à forma de partilha das ideias que o assunto sugere e inspira. Este meu exercício não é senão o simples aflorar da questão, desde logo adequado a um jornal de vulgarização de temas gerais, com as características d’O Clarim.

O que me dá a excelente oportunidade, aliás, de me quedar um pouco sobre um dos tópicos dos mais interessantes do estudo das Relações Internacionais: exactamente a realidade das religiões, não como disciplina dogmática, mas como força mobilizadora de transformações sociais. Sociologia, História e Ciência Política são neste contexto irmãs gémeas, as três concorrendo para a compreensão global de um tema complexo.

 

A redescoberta do sagrado?

Este tema já foi por mim abordado nas páginas deste semanário, mas agora a perspectiva é diferente, como se verá.

Tem sido sublinhado – e é hoje intensamente estudado pelos académicos de diferentes disciplinas e pelos analistas de todas as orientações políticas – o papel das religiões no mundo de hoje. Desde logo, o que significa o reacender do seu interesse pelos seguidores das diferentes crenças.

É uma nova procura de Deus… – dizem uns. É a insatisfação pela civilização material que estamos a consentir que se crie… – dirão os mesmos e outros ainda.

 

As religiões como matrizes de identidade

Mas como se manifesta este acrescido papel da religião, das religiões, no mundo de hoje? Podem citar-se alguns exemplos óbvios, mesmo muito óbvios, de tal modo eles modelam o nosso tempo: é o reavivar do Islão como matriz da identidade de povos e países anteriormente colonizados. É a sua instrumentalização para fins terroristas, com grave prejuízo da sua essência religiosa, a favor da dimensão política extrema.

É ainda a sua força identitária nas comunidades emigrantes, nos diversíssimos países de acolhimento, Estados Unidos, União Europeia e muitos outros. Estando aqui o Islão em plano igual ao do Budismo, Hinduísmo, Cristianismo, e todas as outras confissões que mantêm coesos os laços de identidades das comunidades imigradas.

 

Obreiras de uma nova globalização?

As religiões como obreiras de uma nova globalização? Basta atentar na força aglutinadora do Catolicismo ou do Islão, muito para além das fronteiras que lhes deram origem, para reconhecer que ambos constituem vastos movimentos transnacionais.

Não haverá porventura lugares no mundo mais visitados, por pessoas de todas as nacionalidades, do que a cidade de Jerusalém, a Praça de São Pedro em Roma ou Meca, em direcção à qual rezam diariamente, por cinco vezes, os muçulmanos de todo o mundo.

A uma escala mais reduzida mas não negligenciável, o nosso Santuário de Fátima ou o equivalente em Lourdes correspondem a idênticas características de interesse e mobilização internacionais.

A uma escala adequada ainda, o mesmo se poderia dizer da cidade santa de Qom, no Iraque, celebrizada em tempos modernos por ter sido terra de exílio do Ayatollah Khomeini. E não esquecendo os múltiplos santuários do panteão hindu que povoam a imensa Índia, movimentando milhões de pessoas anualmente, ao saber dos respectivos calendários litúrgicos.

Mas para além da grande força e representatividade dessas manifestações de Fé, à escala do globo, como torná-las operativas para o bem comum? Como transformar essa energia em acção, não política no sentido convencional, mas em força social para a mudança?

O que deixo escrito a seguir pode ser a resposta a tal questão.

 

A III Cimeira entre líderes do Cristianismo e do Islão

De 2 a 4 de Dezembro último, reuniram-se no Vaticano os líderes das diferentes denominações cristãs, com líderes muçulmanos, entre os quais o príncipe herdeiro da Jordânia, para debater temas de preocupação e interesse comum, no que concerne às questões internacionais mais candentes.

A Declaração final da cimeira é concludente: chegou o tempo de se darem as mãos estes filhos de Abraão, o pai comum, cujas desavenças têm tanto agravado os problemas da Humanidade.

Mas a Cimeira exige estudo separado.

 

Declaração de Erradicação da Escravatura

Como o anterior, aqui temos um tópico importantíssimo e que realça o papel internacional da Igreja Católica.

De facto, a assinatura, pelos principais líderes religiosos mundiais, no Vaticano, no princípio deste mês, de uma Declaração sobre Erradicação da Escravatura, em todas as suas formas, é o perfeito exemplo do papel que a Igreja Católica e as restantes confissões religiosas podem e devem (e querem?) assumir na nossa época.

Em torno do Santo Padre viram-se então representantes do Islão xiita e sunita, do Budismo, do Hinduísmo, do Judaísmo, e, no quadro das confissões cristãs, as Igrejas Ortodoxa e a Anglicana.

Sendo a única religião que assume também, fruto do passado, uma estrutura de Estado soberano, a Igreja Católica possui por esse facto uma organização diplomática profissional e experiente que dialoga com as autoridades seculares dos Estados com os quais o Vaticano tem relações oficiais.

Mas a referida iniciativa, a da assinatura da Declaração sobre a Escravatura, pelos líderes religiosos e não pelas autoridades civis e políticas prova que, sem se substituir nem competir com os Estados, as grandes religiões do globo sabem, a partir de agora, que com as suas realizações conjuntas podem atingir níveis de penetração nos mais ínfimos sectores das comunidades locais de todo o mundo que os poderes públicos são incapazes de conseguir, pela própria natureza transitória e burocrática dos respectivos agentes.

Carlos Frota

Universidade de São José

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