POR TERRAS DE ARRACÃO – 4

POR TERRAS DE ARRACÃO – 4

O Secretariate a igreja arménia

Nem preciso de sair da rua Bo Aung Kyaw – assim designada em honra do dirigente estudantil assassinado pela polícia britânica aquando dos motins anti-coloniais de 1938, a dita “Revolução 1300” –, pois logo um quarteirão abaixo deparo com o gigantesco complexo de edifícios administrativos erguido em 1889 ao estilo vitoriano, tijoleira entre o vermelho e o amarelo, e cujo estatuto o ditatorial regime dos generais prolongaria após aí ter assassinado a sangue frio Aung San, pai da moderna Myanmar, e seis dos seus ministros. O grupo de paramilitares armados até aos dentes e a soldo do ex-ministro U Saw sabia bem qual o departamento onde estava reunido o general com os seus homens de confiança, nesse fatídico 19 de Julho de 1947.

Actualmente designado Secretariat, o imponente prédio integra a lista do património da cidade de Yangon (Rangum) e foi recentemente alvo de intenso trabalho de restauro. A função actual desse espaço traduz uma importante vitória da cultura e da coisa pública face aos poderosos interesses dos agentes do imobiliário que o quiseram ver transformado num hotel de luxo, felizmente sem sucesso. O Secretariat é hoje museu e sítio devotado às mais diversas actividades culturais que os jardins circundantes prolongam em espaço de lazer. Estamos a falar de seis hectares e meio, um quarteirão inteiro, na zona mais nobre da cidade! Um feito, sem dúvida.

O derradeiro património de que vos venho aqui falar tem a sua entrada principal na rua 40. A Igreja Apostólica Arménia de São João Baptista, datada de 1862 e consagrada a 17 de Janeiro do ano seguinte, como indica uma singela placa de mármore à entrada, é o mais antigo templo cristão de Yangon. Foi implantado num terreno oferecido pelo monarca birmanês em reconhecimento da capacidade negocial dos arménios, fundamental para fomentar acordos entre a realeza doméstica e o mundo exterior. Franqueia-nos a entrada um velho e sorridente porteiro, e logo salta à vista o periclitante estado exterior da bonita igreja. Longe vão os tempos em que os arménios (aqui estabelecidos desde os primórdios do século XVII, ou até antes) tinham peso na economia local, como o comprova uma lápide de rebordos dourados que o estuque carcomido mal segura à parede, ali colocada em memória de dois dos mecenas do templo: Avietoom Aghabeg, morto em 1856, do Avietoom Trust; e Mary Gabriel Eleazar, morta em 1883, da Eleazar Trust.

Entre as figuras gradas desta pequena mas dinâmica comunidade, além dos mencionados irmãos Sarkies, realce-se a figura de Nicolai de Aguilar, financiador da igreja portuguesa do Sirião, datada de 1749, onde repousam os restos mortais deste arménio, pelo menos a julgar pela pedra tumular com inscrição em Português, Latim e Arménio que lá está. Pete Arratoon, dono do famoso restaurante Silver Grill, a abastada família Balthazar e os engenheiros A.C. Martin e V.J Nahapiet, responsáveis por muitos dos edifícios coloniais ainda existentes, são outros nomes de relevo. A maioria da comunidade abandonou o País após o bombardeamento nipónico de 23 de Dezembro de 1941. Os mais afortunados escaparam de avião ou navio; outros viram-se obrigados a juntar-se às centenas de milhares de indianos e de euro-asiáticos (onde constavam portugueses de Goa, como já aqui vimos), obrigados a épicas jornadas terrestres que a muitos custaria a vida. Fala-se num milhão de pessoas em movimento, um verdadeiro êxodo. Fugiam, não só dos japoneses mas também dos nacionalistas do Burma Independence Army que encaravam a conjuntura como oportunidade de excelência para se vingarem dos antigos colonos e de quem mais proximamente os serviam, não hesitando em aliar-se aos invasores para conseguir esse objectivo.

A lápide de madeira castanha escura no pórtico desta modesta igreja honra a memória dos treze membros, filhos e netos, da família de Arakiel Mackertich Minus e Woscoom Minus, que enfrentaram a terrível rota do vale de Hukawng, à qual não sobreviveriam, vitimados pelo cansaço ou pela malária. Maurice Collis, no seu livro “Last and First in Burma 1941-1948”, descreve-nos esse trajecto como uma “aventura a sério”, em boas condições climatéricas, mas que em tempo de monção (como foi o caso dos Minus) “era como entrar no Vale da Sombra da Morte”.

O interior da igreja é surpreendentemente espaçoso e está muito bem conservado. Atrás do altar vemos uma pintura da Última Ceia e nas paredes avulsa informação histórica sobre a comunidade, da qual ressalvo um curioso mapa representando a Yangon de meados do século XVIII, por altura da sua fundação (1755) pelo poderoso Alaungpaya – curiosamente, de uma linhagem nobre terratenente no vale do Mu, onde se situam as aldeias dos bayingyis – e unificador dos reinos da Birmânia.

Grande parte do que é hoje a baixa de Yangon era ocupada por lagos e um veio do rio homónimo que rodeava a cidade amuralhada transformando-a numa pequena ilha. Era esse o seu coração e nele se abrigava a igreja portuguesa (muito perto da actual catedral) e a primeira das igrejas arménias, na margem do curso principal do rio, muito perto da alfândega. O cais utilizado constantemente por milhares de cidadãos para atravessarem para a outra margem do Yangon era, já então, o “cais do rei”. O pagode Sule situava-se frente à cidade muralhada com portões nos quatro pontos cardeais, mas na margem oposta, onde um pouco mais a norte coexistiam, lado a lado, uma outra igreja católica e o cemitério arménio, e um pouco adiante uma “Mission House”, provavelmente algum convento ou casa de jesuítas ou agostinhos. De tudo isso não restam, como seria de esperar, quaisquer vestígios.

Joaquim Magalhães de Castro

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