PATRIMÓNIO VAI-SE DESVANECENDO

PATRIMÓNIO VAI-SE DESVANECENDO

Duas igrejas, sortes diferentes

Portugal é um país com milhares de templos religiosos, na sua maioria dedicados à fé cristã, uma vez que também é aquela que a maioria da população professa. Por isso, não é de admirar que, de Norte a Sul, existam templos que agradam a todos os gostos e que, aqui e ali, se descobrem histórias de erros que já não se podem corrigir.

No distrito de Aveiro, de que vos vamos falando ultimamente, e de que iremos continuar a falar porque a sua história religiosa é riquíssima, há dois templos que atraem notoriamente. Não iremos falar sobre eles em crónicas separadas, pois aqui os resumimos num único texto.

Remontam aos Séculos X e XI e têm uma arquitectura que só por si merece uma visita demorada. Não de horas mas de dias, que certamente serão preenchidos com a constante descoberta de detalhes que passam despercebidos ao mero turista. Em termos arquitectónicos nenhum deles é exuberante, o que também não seria normal dada a época em que foram edificados. Mas em termos de fachadas e do uso extenso de azulejos faz deles belíssimos exemplares, sendo que se destacam nos locais onde foram construídos. Um pode ser observado com os nossos olhos, o outro temos que nos debruçar sobre várias fontes e tentar imaginar como era…

Comecemos pelo mais antigo, na vila de Argoncile, concelho de Santa Maria da Feira, bem perto do Porto. Aliás, mais perto do Porto do que da sua capital de distrito, Aveiro. A Igreja de São Martinho, também conhecida institucionalmente como Igreja Matriz de Argoncilhe, remonta ao Século XI. As provas documentais mais antigas que se conhecem apontam que a sua posse inicial estava nos proprietários senhoriais que controlavam os campos produtivos destas zonas, o chamados Senhores de Coutos. Era usual, de acordo com os historiadores, estes senhores fazerem avultadas doações em honra dos seus santos de eleição ou “até para salvar suas almas”. Isso mesmo é atestado pelo documento que prova a sua doação ao Mosteiro de Grijó, em 1093, pelo então bispo de Coimbra, D. Bernardo. Menos de meio século depois, outro documento, cunhado pelo bispo do Porto, D. João, assinala a realização de remodelações na igreja.

Apesar de pequena, apresenta uma fachada exterior toda coberta de azulejos, de um azul que em dias de sol parece ainda mais vivo. No interior, como era hábito na época, a nave central termina no altar principal e há dois altares laterais dedicados a dois santos – estes últimos são muito mais recentes do que o templo original.

O segundo local é a Igreja Matriz de Santa Marinha de Cortegaça, na vila de Cortegaça, no concelho de Ovar. Esta, provavelmente, seria mais exuberante, mas já não podemos deliciar-nos a contemplar a estrutura original. Infelizmente foi demolida, sem que ficasse qualquer imagem para memória futura. Ainda assim, a actual é impressionante.

Segundo fontes históricas, que se podem consultar na diocese de Aveiro, foi doada em 1163 ao Mosteiro de Grijó. Pelo menos é o que está escrito num testamento. Há também um outro documento, relativo a rendas a pagar, que os historiadores acreditam datar entre 1174 e 1185, que refere a Ecclesia Sanctae Marina de Cortegaça (Igreja de Santa Marinha de Cortegaça). Portanto, com direitos já enraizados, é de acreditar que a mesma existisse há já alguns anos, a avaliar pela data do referido testamento.

Contudo, o templo original desapareceu – pela raiz – no início do Século XX! Não conseguimos descobrir qualquer ilustração do templo original, mas felizmente o padre João de Brito Cardoso, nas Memórias Paroquiais de 1758, descreve-nos de forma bem ilustrativa o que teria sido o antigo templo: “tem esta Igreja quatro altares, a saber: o altar-mor, dois colaterais e outro quase no meio da Igreja, da parte da Epístola. No altar-mor está o Santíssimo Sacramento; da parte do Evangelho está a padroeira, a Senhora Santa Marinha e da parte da Epístola está Santo Alexandre Bispo e no meio do retábulo da Capela-mor está uma imagem de Jesus de estatura medíocre.

No colateral que fica da parte do Evangelho está uma imagem do arcanjo S. Miguel e no colateral que fica da parte da Epístola está uma imagem que a devoção dos fiéis intitula a Senhora do Amparo e do Rosário e no altar que fica quase a meio da Igreja da parte da Epístola, está uma venerada imagem de Cristo Crucificado, a quem a devoção e zelo dos fiéis a respeitam com o título de Senhor do Bom-Fim”.

Portanto, entre as mais variadas peculiaridades arquitectónicas, conseguimos saber que o templo original tinha um altar central, em vez de ter o altar no topo da nave central, o que é uma característica muito peculiar para o Século XII.

Pena é que este templo tenha sido demolido até aos alicerces em 1918, ano em que foi inaugurada a actual igreja. O seu local original é assinalado pelo cruzeiro que surgiu naquele espaço.

O actual edifício é de uma beleza igualmente impressionante, mas foi a história do original que nos cativou quando ouvimos o seu relato pela primeira vez.

Causa indignação saber que ao longo dos últimos anos se vêem destruindo exemplares histórico-religiosos, embora com o intuito de serem substituídos por outros. É que apesar de serem bem delineados e planeados, jamais irão conseguir preencher o vazio deixado por algo que perdurou séculos e séculos.

Nesta freguesia, há várias gerações que intelectuais se vão indignando e tentam encontrar vestígios do antigo edifício, mas sem qualquer sucesso.

A terminar, resta-nos desejar a todos os leitores um Santo Natal e que 2021 traga um período bem mais auspicioso do que este que agora encerra.

João Santos Gomes

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