Passeios por Havana – 4

O parente de Espinoza e os luso-canários

A avenida Paseo del Prado, divisória da zona histórica, a dita Habana Vieja, é uma área com muitos edifícios já recuperados que desemboca no Capitólio, antiga sede do Governo e actual Academia das Ciências, talvez a parte mais nobre da cidade. Até 1863 conviveu de perto com a antiga muralha (demolida nesse ano), situando-se outrora ali a estação ferroviária de Villanueva. Se seguirmos em sentido contrário, entramos directos na boca do porto de Havana, que mais parece um lago com cinco reentrâncias e ao qual se acede por um canal apropriadamente denominado Canal de Entrada. São escassas e pequenas as embarcações que naquelas calmas águas pairam, simples barcoitas de pesca artesanal. Para lá me dirijo, não sem antes ter anotado no meu caderno de campo o nome Emma Rosa Chuy escrito numa pequena placa afixada na fachada amarela de uma escola de educação especial que mais tarde decifraria.

Chuy é apelido chinês e, no caso, pertence à fundadora desse estabelecimento de ensino que actualmente acolhe 145 estudantes. Rebento de um filho do cule Joaquín Chuy e de uma cubana, provavelmente negra ou mulata – os cules não tinham acesso às mulheres europeias – Emma, conhecida em família como Yuyi, era uma pessoa sensível cujo amor às crianças levaram-na a optar pela “nobre tarefa de ensinar” como modo de vida. Após os estudos e uma experiência como professora rural, juntar-se-ia à célula clandestina do Movimento 26 de Julho, tendo casado com Frank Pais, filho de imigrantes galegos que morreria com apenas 22 anos, em 1957, sem ter visto triunfar a revolução pela qual tanto lutara. Tão pouco a viu Emma, esmagada pelo jipe onde seguia e que capotou numa estrada lamacenta em Abril de 1958. Ambos foram enterrados com honras militares.

Ao contrário de Portugal, Cuba imortaliza os seus heróis. E não importa qual a época em que viveram, quais os ideais defendidos ou qual o inimigo combatido. Exemplo disso são os muitos heróis da independência de Cuba representados em estátua, todos eles eivados dos ideais da Revolução Francesa e que nos Estados Unidos foram buscar apoio e refúgio. Nesse domínio, a cidade é um museu a céu aberto. E não há aqui qualquer tentativa de revisionismo, pois tanto se evoca o nome de um amotinador como o de um missionário. Com a promessa de a seu tempo abordarmos um exemplo desta última estirpe, fiquemos com uma amostra do “poeta e mártir” Juan Clemente Zenea, introdutor do Romantismo em Cuba, exilado em Nova Orleães, onde colaborou com a imprensa local, tendo através dela levado a cabo feroz campanha contra o Governo espanhol.

A uns metros dali, no fim da avenida pedestre do Prado, as muralhas do castelo de San Salvador de La Punta protegem agora o espólio de um museu. Junto com o icónico La Fuerza e o Castelo dos Três Reis do Morro, mesmo em frente, à distância da entrada do canal, constitui o núcleo defensivo da Havana velha. A sua construção gerou grande polémica e ao longo do demorado e custoso processo esteve para ser interrompida por diversas ocasiões. Em frente, deparo com a estátua de um militar identificado por uma palavra apenas: Miranda. O nome completo deste líder revolucionário venezuelano – considerado o percursor de Simón Bolívar – é Sebastián Francisco de Miranda y Rodríguez de Espinoza, vulgarmente conhecido como Francisco de Miranda, nascido em 1750, na província espanhola de Nova Granada. Interessa aquilatar aqui das suas origens, pois no entender de José Chocrón Cohén, director do Centro de Estudos Sefarditas de Caracas, Miranda teria uma ligação familiar com Baruch Espinoza, o filósofo holandês de origem portuguesa. Tal hipótese seria corroborada pelas investigações da brasileira Anita Novinsky, que numa das suas muitas obras sobre o papel dos cristãos-novos na construção do Brasil, sugere que o sobrenome Miranda era comum entre os cripto-judeus, pois constava na lista sancionada pelo Santo Ofício. O seu pai, Sebastián de Miranda Ravelo, era um imigrante das Ilhas Canárias que se havia tornado num comerciante de sucesso; e sua mãe, Francisca Antonia Rodríguez de Espinoza, uma abastada filha da terra. Neste caso, a ligação lusa parece ser dupla. E dupla a via judaica também, pois ambas as árvores genealógicas parecem ter a sua origem em marranos conversos.

Miranda desfrutou das melhores escolas, embora não pertencesse necessariamente à alta sociedade. O pai, inclusive, seria alvo de discriminação dos rivais devido às suas raízes canárias, à semelhança de muitos dos habitantes de Cuba. E a esse facto não é alheio a Portugal, ou melhor dizendo, a essa preciosa lusa parcela insular ao largo da costa africana onde primeiro se cultivou a cana-de-açúcar. E com tal sucesso que a actividade se estenderia às vizinhas Canárias, tendo-se tornado no principal motor económico no seguimento da sangrenta conquista do arquipélago responsável pela erradicação dos guanches autóctones. Ora, esse fenómeno obrigaria à importação de especialistas no cultivo da cana, tendo fornecido a Madeira (onde há décadas se cultivava e exportava para a Europa essa planta) muita da imprescindível mão-de-obra. Entre os imigrantes constavam retornados guanches, agora com nomes e sobrenomes portugueses. Outrora trazidos de lá como escravos, voltavam para se integrar na sua terra e miscigenar-se com o seu povo. A estes se juntaram judeus portugueses vindos do continente, fugidos à perseguição. Podemos afirmar, e sem exagerar, que detinham nacionalidade portuguesa a maioria dos colonos (agricultores, artesãos, plantadores de cana) que emigraram para as Ilhas Canárias nas primeiras décadas após a conquista. Daí que não seja de estranhar, nas palavras do linguista Francisco García-Talavera Casañas, “os cento e cinquenta sobrenomes portugueses enraizados no nosso arquipélago, os numerosos nomes de lugares localizados ao longo da geografia insular e as infinitas palavras portuguesas que ainda sobrevivem na fala comum das Canárias”.

Casañas deu-se ao trabalho de elaborar a lista dos ditos apelidos, tendo-se socorrido dos dados dos Instituto Nacional de Estatística Espanhol, do livro de Manuel de Sousa “As origens dos apelidos das Famílias Portuguesas” e de vários outros trabalhos na área da genealogia, da onomástica e da antroponímia. Eis (por ordem alfabética) os cem sobrenomes mais comuns de origem portuguesa ou galego-portuguesa, enraizados na população das Canárias, muitos dos quais visivelmente castelhanizados: Abrante, Abreu, Acevedo, Acosta, Acuña, Afonso, Aguiar, Amaral, Arbelo (também Albelo e Arvelo), Araña, Arrocha e Arocha, Avero, Bacallado, Báez, Barreto, Bello, Borges, Brito, Camacho, Carballo, Castañeda, Castro, Cejas, Chávez (Chaves), Coello, Concepción, Correa, Corujo, Curbelo, Dávila, Delgado, Déniz, Dévora (Évora), Dorta, Estévez, Fagundo, Fajardo, Falcón, Falero, Fariña, Farías, Farrais, Felipe, Feo, Ferrera, Figueroa, Fleitas, Fontes, Fraga, Fragoso, Fumero, Galván, Govea, Goya (de Goia), Guedes, Henriquez, Jorge, Leal, Lemes, Lemus, Lima, Luis, Machado, Marante, Marrero, Mascareño, Matos, Mederos, Melo, Méndez, Mendoza, Meneses, Mesa, Mora, Morera, Núñez, Oliva, Olivera, Pacheco, Padrón, Pais, Perdigón, Perera, Perestelo, Pestano e Pestana, Pinto, Portugués, Ramallo, Ramos, Rancel, Ravelo, Rivero, Silva, Silvera, Sosa, Tabares, Tavío, Tejera, Viera e Yanes. “A estes há ainda a acrescentar os Alvares, Cabreira, Dias, Domingues, Fernandes, Gomes, Gonçalves, Hernandes, Lopes, Martins, Peres (ou Pires), Rodrigues, Soares, que foram castelhanizados através da mudança do ‘s’ final para o ‘z’ castelhano. Além disso, sobrenomes como Dorta (De Horta) e Yanes (Eanes), embora de clara origem portuguesa, são genuinamente canários”, salienta Francisco García-Talavera Casañas.

O investigador lembra a remota origem de alguns desses apelidos – “na Galiza e nas Astúrias, e mesmo em Itália” – esclarecendo que “depois alguns dos seus ramos foram para Portugal”. Certo é que quando chegaram às Canárias, “os seus transportadores eram já portugueses”, como o comprovam os protocolos notariais, os registos paroquiais e demais documentos. Em jeito de curiosidade estatística, assinale-se que 550 mil canários nativos – ou seja, um cada em três – são portadores de um de entre a centena de apelidos lusitanos, sendo os mais abundantes Ramos, Marrero, Delgado, Acosta, Rivero, Méndez, Sosa, Afonso, Luis e Padrón. Resumindo: as estatísticas indicam que pelo menos metade dos sobrenomes dos canários tem a sua origem em Portugal. E como as Canárias foi uma das grandes distribuidoras de colonos nas Caraíbas é normal que seja elevada a quantidade de gente nessa região de origem portuguesa.

Joaquim Magalhães de Castro

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