Os Livros Apócrifos
Muito se tem falado de textos apócrifos, evangelhos apócrifos, enfim, um termo que parece abrigar ou justificar mil sentidos e aproveitamentos, que apenas conduzem a erros e más interpretações, desvirtuando até o valor literário e religioso desses conteúdos. Na passada semana falámos aqui da Bíblia, do cânon e formação das Sagradas Escrituras. Mas há outros textos, os apócrifos, por exemplo, que a Igreja não desdenha nem amaldiçoa, como também erroneamente se apregoa, antes até reconhece riqueza literária, historiográfica, importância para os estudos bíblicos. Mas é preciso ler, com empatia, simpatia também, mas acima de tudo saber ler, para melhor interpretar. Sem códigos ou fantasmas, mistérios ou enigmas.
O termo apócrifo é a transliteração do Grego απόκρυφος (ἀπό = de + κρύπτω = esconder), apókruphos, em Latim apocryphus, ou seja, “escondido”, “oculto”.
Na sua origem o termo estava relacionado com as comunidades que se serviam desse tipo de textos, excluídos da pública leitura litúrgica, pois eram considerados portadores de tradições erradas e contrárias aos livros tidos por correctos e de uso na liturgia. Actualmente, a expressão está conotada com as tradições judaico-cristãs dessas comunidades e os textos que lhes serviam de base. O termo assume assim o sentido de texto não incluído na lista (cânon) de livros sagrados da Bíblia, inspirados e revelados, logo não sendo, os apócrifos, usados no plano doutrinal e litúrgico. Devido à adopção de diversos cânones de livros da Bíblia, o termo “apócrifo” varia segundo a confissão em referência. Por exemplo, no mundo protestante, por “apócrifos” entendem-se os livros presentes no cânon cristão do AT – não no judaico – que na tradição católica são designados como deuterocanónicos. Os livros que se encontram a mais na lista grega judaica e cristã antiga são, com efeito, denominados deuterocanónicos (“apócrifos”, entre os protestantes), ou pertencentes ao “segundo cânon”, chamado “cânon longo”. Convencionou-se ainda dar o nome de “primeiro cânon” à lista de livros que são coincidentes tanto na Bíblia Hebraica como na Bíblia Grega, livros chamados protocanónicos. Não se deverão confundir estes dois tipos de livros com os apócrifos.
O termo “apócrifo” foi usado pela primeira vez por S. Jerónimo, no séc. V, para designar textos judaicos antigos redigidos entre o último livro das escrituras judaicas, o de Malaquias, e a vinda de Cristo. São também considerados apócrifos, por exemplo, os livros que não fazem parte do cânon da religião que se professa.
No que concerne à tipologia, há que referir primeiro que os textos apócrifos de tradição judaico-cristã representam um número assaz elevado, variando quanto a: data e lugar de composição; língua de redacção; autor: muitos dos textos apócrifos são pseudoepígrafos (do Grego “com título falso”), ou seja, apresentam-se através de um artifício literário como obra de autor ilustre, um mestre, por forma a ganhar-se em autoridade, a qual não existiria de outro modo no texto (alguns livros do NT são hoje considerados também de biblistas pseudoepígrafos, como a segunda carta de Pedro, escrita após a sua morte); tradição religiosa de referência: judaica, cristã, herética (principalmente nos ambientes gnósticos); género literário: narração histórica, carta, actos (quando se narra algo específico de algum protagonista), evangelho (referente a Jesus), apocalipse (relato alegórico, descrevendo o futuro ou algo celestial); fortuna (sucesso) e uso na tradição religiosa: a maior parte dos apócrifos não são considerados obra de autores de sucesso, outros (evangelhos apócrifos da Infância de Jesus, por exemplo), gozaram de algum êxito (artístico, pelo menos), outros com consideração por parte de autores consagrados (não sendo até considerados apócrifos…); disponibilidade dos textos: ou seja, alguns chegaram a nós como manuscritos completos, como a preciosa descoberta em 1945 em Nag Hammadi, Egipto (uma jarra com 13 códices manuscritos, contendo 52 títulos, datáveis dos sécs. III-IV, obras gnósticas em língua copta, consideradas perdidas até à sua descoberta, de que se destaca o Evangelho de Tomé), outros, por seu turno, já são testemunhos fragmentários e indirectos de obras de escritores coevos, como Padres da Igreja (sécs. II-VI), que citaram nos seus manuscritos alguns trechos para se poder confrontar as afirmações e logo ilegitimar enquanto textos canónicos. Por último, outros há de que apenas se sabe o nome do texto, ou pouco mais.
A situação relativa aos textos sagrados a que se assistia, por exemplo, no século II, antes do cânon bíblico se definir, era quase caótica em termos de textos em circulação: havia textos originais referentes directa ou indirectamente aos Apóstolos; cópias desses escritos; textos falsamente atribuídos aos Apóstolos; textos que não tinham relação com eles, mas que gozavam quase da mesma autoridade. Tudo isto aumentava o rol de livros considerados sagrados em circulação, criando confusão e contradição, ambiguidade e dúvida. Daí a cair-se em erros e interpretações falaciosas era fácil. Todavia, hoje em dia são estudados e interpretados por teólogos e historiadores, pois ajudam a perceber os primórdios do Cristianismo.
Na lista de livros apócrifos da Bíblia, temos por exemplo 24 títulos para o AT, mais 42 ditos de “Qumran” (ou Manuscritos do Mar Morto, Israel, achados em 1947, no seu todo 930 fragmentos de manuscritos hebraicos, aramaicos e gregos, em 11 grutas, datados entre 250 a.C. e o séc. I) e outros três títulos avulsos (um deles o famoso Evangelho de Judas). Do NT destacam-se os populares Evangelhos da Infância (de Jesus), como o Evangelho da Infância, de Tiago (ou “Proto-Evangelho de Tiago”), o Evangelho da Infância, de Tomé, ou a junção ulterior destes dois no Evangelho de Pseudo-Mateus (também chamado de “Evangelho da Infância de Mateus” ou “Nascimento de Maria e Infância do Salvador”). Outros evangelhos da Infância, entre os mais antigos, temos o Evangelho da Infância Siríaco (ou Evangelho Árabe da Infância), a História de José, o Carpinteiro, a Vida de João Batista ou o Evangelho Arménio da Infância de Jesus. Além destes Evangelhos da Infância, contam-se ainda os Evangelhos Judaico-cristãos, as chamadas Versões Rivais dos Evangelhos Canónicos (Evangelhos de Marcião; de Mani, ou Evangelho Vivo, ou dos Vivos; de Apeles; e de Bardesanes), os Evangelhos de Ditos, os Evangelhos da Paixão e os Evangelhos Harmónicos. Depois surgem os designados como Textos Gnósticos (muitos recuperados a partir de Nag Hammadi): os Diálogos com Jesus, os Textos sobre Jesus, os Textos Setianos (adoradores de Set, como Messias) sobre Jesus e os Diagramas Rituais. Por último, refiram-se ainda os Actos Apócrifos, as Epístolas, os Apocalipses Apócrifos, o Destino de Maria, além da Miscelânea (16 títulos), Fragmentos (6) e Obras Perdidas (8, como o Evangelho de Eva).
Apócrifos, fora do Cânon, seja como forem chamados, são textos importantes, com valor interpretativo, contextual e literário. Não são fantasias ou heresias, códigos secretos ou perigosos: mais que tudo, são reflexo da riqueza espiritual, da dinâmica das comunidades cristãs e do fervor religioso.
Vítor Teixeira
Universidade de São José