Para além das evidências

Preconceitos que nos habitam

Todos nós somos boas pessoas, todos queremos o melhor para os outros (pelo menos para os nossos familiares e amigos), todos nós dizemos que não se deve discriminar ninguém – nem pela cor da pele, nem pelo sexo, nem pela doença, nem pelo “cheiro”, nem pela “roupa”, nem pelo “carro”, nem pelo estrato social, nem pelo poder económico, nem pela ligação a uma religião.

Cada um de nós vê o mundo a partir da “janela” dos seus “olhos”, altamente condicionados pelo “seu” ângulo de visão. Efectivamente, todos nós temos uma geografia, uma língua e um contexto que nos “enche” de conceitos prévios, de juízos antecipados, de catalogações superficiais; todos nós somos muito preconceituosos – mais do que pensamos e, pior, mais do que queremos admitir.Pensamos sempre que os outros estão errados e temos a tendência para ver a verdade (só) do nosso lado. O mundo como o vemos faz muito sentido (pelo menos para nós). Por isso, reclamamos com os outros que insistem em ver “ao contrário”, insistem em não perceber bem a realidade… E o diálogo (quase sempre “monólogos sobrepostos”) continua a ser a nossa tentativa de “convencer” o outro com as nossas “razões”… Custa assumir que o outro tem mais razão e está a ver melhor a realidade do que eu… custa muito.

 

CONCEITOS E PRECONCEITOS

Frequentemente notamos, nestes “diálogos”, os muitos preconceitos que nos habitam, as muitas afirmações “gratuitas” e superficiais que dizemos. Às vezes até dizemos, para reforçar ideias ou fundamentar opiniões, aquilo que outros nunca disseram, ou citamos o que nunca lemos, ou damos exemplos que nunca aconteceram realmente… Por isso, muitas das nossas “solenes” opiniões são mais da área da “achologia”… ou seja, “eu acho que” (ciência com muitos praticantes e por onde todos já passámos algumas vezes).

Mas o grande problema é que as nossas afirmações, para além de serem genericamente pouco profundas e fundamentadas, estão cheias de “conceitos prévios”. Preconceitos que estão marcados, desde logo pela língua. Gosto de pensar sobretudo em expressões e conceitos “encriptados” como o “humor negro” (e não branco); “trabalhar que nem um preto” (porque não trabalhar que nem um amarelo); “pareces mesmo um alentejano” (não um nortenho); “pareces uma tia de Cascais” (não de Odivelas); “és mesmo loura” (não ruiva)… Depois temos “ideias feitas” das brasileiras, dos moldavos, dos ciganos, dos africanos, dos alemães…, são todos… e resumimos todos os cidadãos de um povo numa palavra! Os outros também fazem o mesmo com os portugueses (certamente). Depois, os políticos são falsos, os advogados mentirosos, os médicos ricos, os homossexuais exibicionistas, os futebolistas ganham todos bem, os patrões estão sempre a tentar “tramar” os empregados… Conceitos prévios que dificultam um diálogo e prejudicam uma natural aproximação ao outro como simplesmente uma “pessoa” (no fundo como eu) – com grandezas e limites.

 

PRECONCEITOS GEOGRAFICOS

Outra área enorme de preconceitos tem a ver com, imagine-se, a geografia. Ficamos muito perplexos pelos norte-americanos não saberem onde fica Portugal, ou por sermos confundidos como província de Espanha ou estarmos noutro continente – mas (sem consultar nenhum mapa) onde fica exactamente o Equador?, a Polónia tem mar?, onde fica a Etiópia?, ou mesmo a grandíssima Argentina faz fronteira com que países?, em que continente fica a Guatemala?, quais as fronteiras do Luxemburgo (para não ser tudo complicado)?… nem pergunto onde fica a Hungria ou a Roménia! Os outros têm que saber onde vivemos e nós não precisamos de saber onde eles vivem. Mas criticamos muito incomodados a ignorância dos outros (talvez para “esconder a nossa”).

Ainda relacionado com a geografia, gosto de ver o mapa mundo apresentado por um asiático, onde a Europa (dez milhões de Km2) fica num canto do quadro e é só o continente mais pequeno logo a seguir à Oceânia (oito milhões de Km2). Gosto de reforçar a ideia de que a Ásia é o continente maior (45 milhões de Km2) e que logo a seguir está a América (42 milhões de Km2). Mas o mais curioso e flagrante é que num mapa “normal” o continente africano, que é o terceiro maior (30 milhões de Km2), é quase do tamanho da pequena Gronelândia (2 milhões de Km2) – isso não se consegue perceber a não ser que seja mesmo um preconceito ideológico.

 

PRECONCEITOS RELIGIOSOS

Por fim, assinalo vários preconceitos (entre muitos outros) ligados à religião: “as pessoas com fé são menos inteligentes”, entre a religião e a ciência não é possível fazer pontes, a fé é um conhecimento primário e pouco profundo… Antes de mais, começo por recordar que o sistema universitário foi “criação” da Igreja (no início do segundo milénio); depois a Igreja (na sua complexidade e numa sociedade que sempre “desconfiou” das descobertas) esteve em muitos dos primeiros passos de algumas “revoluções” (recordo apenas que o padre católico belga Lemaitre está ligado à origem da teoria do Big Bang)…

Hoje o método cientifico experimental é sinónimo (quase único) de verdade, então pergunto se antes era tudo mentira e se a arte, a poesia, a arquitectura, a filosofia, as ciências humanas… não são uma “verdade” profunda e não darão sentido à vida. Não tenho dúvidas que pagaremos caro uma ideia de conhecimento ligado apenas a pragmatismo, eficiência, verdade científica, evidência. Há mais verdade para além desta verdade que não é tão verdade como diz ser.

 

A DISCUSSÃO CONTINUA

Este artigo termina sem terminar porque apenas quis começar uma discussão – quais são efectivamente os preconceitos que nos habitam?, quanto isso nos condiciona no diálogo e na relação?, quanta superficialidade presente em decisões existenciais?… Porquê a necessidade de tantas etiquetas para definir os outros?, quantas pessoas não conseguimos ver como simplesmente pessoas (iguais ou melhores do que eu)!?…

Pe. Nuno Santos

In Mensageiro de Santo António

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