Papa Francisco convida os católicos da China ao diálogo e à reconciliação

Ide a vós o nosso reino.

O Papa Francisco exortou, na passada quarta-feira, os católicos da República Popular da China a superar as divisões do passado e a promover uma nova fase na vivência da fé no Continente, depois de no último fim-de-semana Pequim e a Santa Sé terem anunciado a assinatura de um acordo histórico relativo à nomeação de bispos. O objectivo do compromisso é o de colocar fim ao prolongado distanciamento entre a China e o Vaticano.

O Santo Padre escreveu uma carta aos fiéis chineses com o objectivo de encorajá-los a “sanar as feridas do passado e a restabelecer e manter a plena comunhão”. Na extensa missiva, Francisco procura tranquilizar as dúvidas e temores com que se deparam os católicos chineses na sequência da assinatura do acordo e deixa um apelo à unidade. “No plano pastoral, a comunidade católica na China é chamada a estar unida, para superar as divisões do passado que tantos sofrimentos causaram e causam no coração de muitos pastores e fiéis. Agora todos os cristãos, sem distinção, realizem gestos de reconciliação e de comunhão”, insta o Sumo Pontífice. “Vivamos a caridade pastoral como bússola do nosso ministério. Superemos os contrastes do passado, a busca da afirmação de interesses pessoais e cuidemos dos fiéis, fazendo nossas as suas alegrias e os seus sofrimentos. Empenhemo-nos humildemente em prol da reconciliação e da unidade”, complementa.

Na carta, para além de pedir a reconciliação dos católicos chineses, Francisco deseja que assumam uma cidadania plena e que se coloquem ao serviço do seu país com empenho e honestidade. “No plano civil e político, os católicos chineses sejam bons cidadãos, amem plenamente a pátria e sirvam o seu país com empenho e dignidade, segundo as suas capacidades. No plano ético, estejam conscientes de que muitos cidadãos esperam deles uma medida mais elevada no serviço ao bem comum e ao desenvolvimento harmonioso da sociedade inteira”, indica.

Os doze milhões de católicos chineses estão divididos entre os que pertencem à Associação Patriótica – organização sob a supervisão directa do Governo e que se mantém à margem da autoridade do Papa – e os que integram a Igreja clandestina, leal à cátedra de Pedro.

Francisco e o seu antecessor, Bento XVI, assumiram desde sempre o desejo de unir as duas comunidades. O Papa emérito enviou uma carta aos fiéis chineses em 2007 e o documento é por várias vezes citado na missiva que o actual Santo Padre escreveu aos católicos do Continente na quarta-feira. Anos de negociações culminaram no acordo agora assinado.

Ao abrigo do documento, pela primeira vez, dois bispos chineses irão participar na próxima reunião do Sínodo dos Bispos, noticiou ontem o La Stampa. Segundo o jornal italiano, os representantes chineses no encontro, agendado para Outubro, deverão ser D. Giovanni Battista Yang Xiaoting e D. Giuseppe Guo Jincai, titular da nova diocese de Chengde.

 

PLENA COMUNHÃO

O compromisso foi bem recebido em Macau, onde é entendido pela Cúria Diocesana como um passo positivo para a unidade da Igreja Católica na República Popular da China e para o fortalecimento da Igreja Universal e da mensagem de Cristo no mundo. “Este acordo constitui um passo significativo a favor da plena comunhão da Igreja Católica na China e ainda com a Igreja Universal”, escreveu D. Stephen Lee, bispo de Macau, numa circular publicada no portal electrónico da diocese local.

Logo após a assinatura do compromisso, em declarações a’O CLARIM, o prelado defendeu a importância do acordo e recordou que o memorando é fruto de uma longa e bem ponderada negociação. «Antes de ter chegado a este acordo, o Vaticano estudou muito e investigou muito. As negociações são o fruto dessa preparação. O acordo é bom para a Igreja, de forma geral, porque pressupõe uma maior comunhão no seio da Igreja. Na China, a Igreja Católica esteve sempre muito isolada», lembrou. «Este passo é um passo em frente. É o início de um outro longo processo que deverá culminar com a comunhão plena no seio da Igreja na China e da própria Igreja Universal. No meu entender, trata-se de um bom acordo», referiu D. Stephen Lee.

 

«Um acordo imperfeito é melhor do que nenhum acordo»

Para Francesco Sisci, sinólogo italiano a quem o Papa Francisco concedeu, em 2016, uma importante entrevista sobre as relações entre o Vaticano e a China, condensa a importância do compromisso firmado no sábado numa única palavra: «um marco».

O professor da Universidade de Renmin, em Pequim, considera que o acordo abre, pela primeira vez, as portas ao reconhecimento da dimensão religiosa do Papa na China. «É muito importante porque pela primeira vez em quase dois mil anos de história a China e a Santa Sé instituem laços e relações formais. A Igreja e as autoridades chinesas nunca tiveram relações tão avançadas no passado», explicou Sisci, em declarações a’O CLARIM.

O sinólogo reconhece que o compromisso está longe de se prefigurar como perfeito, mas coloca a tónica sobre o carácter provisório do documento e defende que um acordo – mesmo que imperfeito – é melhor do que nenhum acordo. «Muitos aspectos da vida da Igreja terão que ser discutidos e durante a discussão não deverão faltar controvérsias», assinalou. «Não nos podemos esquecer, no entanto, que ao longo de trinta anos o Vaticano tentou negociar o acordo ideal. Ao fim de todo este tempo terá percebido que um acordo imperfeito é melhor do que nenhum acordo», reiterou o académico.

Também o padre Franz Gassner, professor da Universidade de São José, afina pelo mesmo diapasão. O coordenador do Departamento de Teologia Católica da Faculdade de Estudos Religiosos da USJ reconhece que o acordo acarreta novos desafios para os chamados católicos clandestinos da República Popular da China, mas está convicto que, sem o acordo, os devotos estariam em pior situação. Para o sacerdote, o compromisso deverá evitar «males maiores». «Por vezes é bom arriscar, particularmente quando a abordagem foi cuidadosamente preparada e planeada ao longo de tanto tempo, com tantas vozes e especialistas envolvidos. No meu entender, o risco é justificado nesta caso. O mal seria maior se não se tivesse arriscado», assume o académico austríaco.

Gassner entende, de resto, o compromisso firmado entre a Santa Sé e Pequim não como uma realidade adquirida, mas sim como o início de um longo processo que deverá trazer vantagens não apenas aos católicos chineses, mas ao povo chinês de uma forma global. «Numa primeira fase, é necessário um período de reconciliação e de cicatrização das feridas do passado», adianta. «No entanto, o acordo deve ser o início de um processo de diálogo e de aprendizagem mútua de longo prazo, tendo em vista um melhor entendimento entre ambas as partes e, mais importante, o bem-estar do povo chinês e dos fiéis», remata o coordenador do Departamento de Teologia Católica da USJ.

Marco Carvalho

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