Análise

Ingenuidade ou estratégia?

Convidado a escrever neste Semanário, onde regularmente colaboro, sobre o tema candente da actualidade católica na China que é o acordo alcançado entre o Governo Central e a Santa Sé, faço-o gostosamente como sempre, permitindo-me no texto uma ou outra opinião ou comentário pessoal que são, naturalmente, da minha exclusiva responsabilidade.

Embora não isento de críticas de vários sectores, é já considerado histórico – e pelo seu pioneirismo é-o certamente – o acordo provisório que o Vaticano assinou com as autoridades de Pequim, sobre a nomeação de bispos chineses.

O entendimento agora alcançado é de facto excepcional, porque ultrapassa o maior obstáculo ao relacionamento recíproco, desde 1951, ponto da discórdia que tem sido entre a Igreja Católica e a China, num litígio que surgiu logo dois anos depois da fundação da República Popular.

 

OS TERMOS DA QUESTÃO

Enquanto Pequim tem insistido, desde aquela data, no direito de designar os seus próprios bispos, o Vaticano tem sustentado, pelo contrário, que as ordenações podem ser feitas apenas com o assentimento prévio do Papa. Dada a oposição frontal de posições, o tema tem sido fonte de divergências, inultrapassáveis até aqui, entre os dois Estados.

Os laços diplomáticos foram cortados aquando da excomunhão por parte de Pio XII de dois bispos designados por Pequim, a que as autoridades chinesas responderam expulsando o núncio apostólico, que se estabeleceu na ilha de Taiwan. O Vaticano é, de resto, um dos dezassete Estados do mundo que reconhecem a independência de Taiwan.

Assinado há dias por Antoine Camilleri, subsecretário das Relações da Santa Sé com os Estados; e por Wang Chao, vice-ministro dos Negócios Estrangeiros da República Popular da China, o presente acordo provisório estabelece um princípio de dupla concordância (do Vaticano e do Governo chinês) na nomeação de bispos católicos.

E dificilmente se vê tal orientação restrita apenas aos bispos actuais e não aplicada no futuro. Aliás, diria, é a jurisprudência agora consagrada que confere valor ao presente entendimento, antecipando já um acordo definitivo, de conteúdo análogo, a vigorar para futuro. Significativamente, aliás, e a corroborar tal tese, o director da Sala de Imprensa do Vaticano, Greg Burke, considerou ser este acordo provisório o início de um processo, tendo sublinhado que «o objectivo do acordo não é político mas pastoral, tornando possível que os fiéis tenham bispos em comunhão com Roma, e reconhecidos também pelas autoridades chinesas».

Da aproximação de posições que agora teve lugar resultou a validação pelo Papa de oito bispos reconhecidos pelo Governo, mas à revelia do Vaticano, um deles a título póstumo. E em troca dessa confirmação por Roma, Pequim reconhece a autoridade pastoral do Sumo Pontífice sobre a Igreja Católica na China, como é regra aliás em todos os países, sendo essencial na organização da Igreja Universal o vínculo que une cada uma das igrejas nacionais à Sé do sucessor de Pedro, isto é, ao Papa.

No seguimento da acordo, o Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês disse em comunicado que “ambas as partes continuarão a manter contacto e vão trabalhar para melhorar as relações bilaterais”.

 

CONSTRUIR A IGREJA DO SÉCULO XXI

Aproveitando a aproximação de relações, o Papa Francisco decidiu constituir na China a diocese de Chengde, que estará ligada à Sé de Pequim. A nova diocese tem uma área de 39 mil 519 quilómetros quadrados, com uma população de cerca de 3,7 milhões de habitantes, dos quais se estima que 25 mil sejam católicos, a viver em doze paróquias e servidos por sete padres.

 

AS CRÍTICAS E A ESPERANÇA

Apesar de não ser sinónimo de um restabelecimento das relações diplomáticas, o anúncio de um acordo preliminar entre a Santa Sé e Pequim constitui uma mudança de direcção para os cerca de doze milhões de católicos chineses, que se dividem entre a Igreja Católica Patriótica e uma outra clandestina que permanece fiel a Roma.

No entanto, nem todas as vozes consideram o novo acordo favorável. Para além da posição conhecida do antigo bispo de Hong Kong, cardeal D. Joseph Zen, outros críticos se exprimiram, como Jonatham Sullivan, director do “China Program”, do instituto de pesquisa sobre a Ásia da Universidade de Nottingham, que manifestou assim o seu cepticismo: «É um passo estratégico para a China e um passo ingénuo para o Vaticano. O Partido Comunista vai usar o acordo como um cheque em branco do Vaticano para a Igreja controlada pelo Estado, num momento em que os fiéis são severamente reprimidos pelas suas crenças e práticas religiosas», advertiu.

Mas será assim? Entre estratégia de um lado e pura ingenuidade do outro? Quem com tanta certeza distribui os rótulos nesta relação desigual entre estrategos e ingénuos conhece mal, penso eu, três mil anos de realidade política chinesa e dois mil anos de diplomacia vaticana. Quero eu dizer com isto que ambas as partes, Governo chinês e Igreja, sabem não só interpretar o presente como antecipar o futuro.

 

POLÍTICO E NÃO PASTORAL

Retenhamos esta distinção que, do meu ponto de vista, é a chave-mestra para a interpretação do entendimento agora alcançado. Político e não pastoral.

Quer dizer: dada a natureza diversa das duas partes, Estado chinês e Estado do Vaticano, um temporal e político no sentido estrito, o outro religioso e pastoral, percebemos que o que move cada um deles é a construção de relações para futuro que acautelem os respectivos interesses de longo, longuíssimo prazo.

O fenómeno religioso não foi extirpado em nenhum lugar do mundo. E as experiências nesse sentido do século XX provam-no. Atente-se, por exemplo, no revivalismo ortodoxo russo, mais marcante ainda desde que Vladimir Putin assumiu o poder…

Assim, a prática religiosa, nas suas diferentes expressões e denominações, faz parte da realidade chinesa. Desde sempre. E o Cristianismo tem aqui uma história de cinco séculos. Matteo Ricci faz parte da História da Igreja Universal e, quer se queira quer não, abriu também um capítulo da História multimilenar desta grande Nação.

Lendo há dias um comentário na imprensa chinesa, percebia eu que esta abertura da China à Igreja Católica se inscreve para o autor no plano do intercâmbio, de séculos, entre a Civilização Chinesa e a Civilização Europeia. Pois seja!

Por outro lado, o século XXI está ainda a ser gerado, nas dores do tempo presente. E a Igreja olha já para as décadas que estão a chegar. E o credo por que se guia tem um só nome: esperança.

Os grandes críticos do acordo agora alcançado olham para o presente ou para o passado recente. O que é compreensível. Mas o nosso Papa Francisco e a Igreja, no seu conjunto, olham para cinco séculos de Cristianismo na China e para as muitas décadas que há ainda a viver neste século XXI.

Será isto ingenuidade ou estratégia?

Carlos Frota 

Universidade de São José

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