A residência papal de Verão
Meio mundo está de férias, estamos em Agosto! Mas parece que o Papa Francisco não está, e parece que não estará. Porque na sua agenda não vislumbramos referência alguma ao lugar onde os Papas tradicionalmente gozam um período de férias ou vilegiatura: o Palácio Pontifício (ou Apostólico) de Castel Gandolfo. Antes de mais, já aqui falámos anteriormente de Castel Gandolfo, mas por motivos científicos: o Observatório Astronómico Vaticano (ou Specola Vaticana) está anexo a este palácio estival dos Papas, localizado nos arredores de Roma, a cerca de 20 quilómetros. Das suas varandas pode-se observar o lago Albano. As suas propriedades alcançam os 55 hectares, alguns constituídos pelos afamados jardins papais, de bela traça e valor botânico.
Foi também aqui, na varanda central da fachada principal do Palácio que o Papa Bento XVI fez a sua última aparição pública e proclamou o seu último discurso como pontífice, antes da sua renúncia. O Palácio de Castel Gandolfo possui, recordemos, direitos de extraterritorialidade e é administrado pela Santa Sé, tal como foi reconhecido em 1929 nos Acordos de Latrão, entre a Santa Sé e a Itália.
Mas não foi sempre um lugar santo. De facto, poucos se lembram quando visitam Castel Gandolfo que ali se encontrava uma das mais famosas villas romanas da Antiguidade, a Albanum Domitiani, uma grande residência, de campo também, do imperador Domiciano (81-96 d.C.), com uma extensão de 14 km2, desde a Via Appia até ao lago Albano. A parte central da residência imperial, ou os seus vestígios arqueológicos, constituem a base do Palácio Pontifício, sobre a colina de Castelgandolfo, sobre a qual se estendia também a antiga localidade de Alba Longa. Ao longe, o mar Tirreno, ali perto os montes Albanos, o lago homónimo, um primor de beleza natural desde sempre, da Villa de Domiciano ao palácio papal de Verão. Domiciano, o mesmo que mandou construir o recinto naumáquico (naumaquias, ou batalhas navais) em plena Cidade de Roma (actual piazza Navona, de “navio” precisamente), prezou tanto o lugar que ali se demorava a maior parte do ano. Mas a preferência pelo lugar não se lhe sobreviveu. Os seus sucessores, como Adriano ou Marco Aurélio, optaram por outras geografias vizinhas de Roma.
Depois, as villas arruinaram-se, tudo ruiu com o fim do Império Romano, o lugar mergulhou na noite dos tempos, com vários proprietários, até acabar nas mãos de uma grande família, os Savelli. Mas estes, em finais do séc. XVI, estavam em apuros financeiros. A 30 de Junho de 1596 o Papa Clemente VIII Aldobrandini (1592-1605) comprou Castel Gandolfo aos Savelli e incorporou a aquisição na Câmara Apostólica, sendo incluída em 27 de Maio de 1604 nos bens não alienáveis da Santa Sé pelo mesmo Papa. O território de Castel Gandolfo foi desde logo eleito pelos Papas como próprio para a sua vilegiatura, tendo a obra sido idealizada por um Papa Barberini, Urbano VIII (1623-44), que logo após a sua eleição ordenou a construção de um edifício no lugar da antiga vila romana de Domiciano.
O “suburbano recesso” dos Papas, como foi alcunhado o complexo estival de Castel Fandolfo pelo povo, foi primeiramente projectado pelo grande arquitecto Carlo Maderno, com apoio dos seus assistentes Bartolomeo Breccioli e Domenico Castelli (em 1629). Urbano VIII, apesar do impulso, optou porém por passar o seu recesso estival numa propriedade dos Barberini, a sua família (Villa Barberini). O primeiro Papa a usar efectivamente o Palácio foi Alexandre VII Chigi (1655-67), que completou o edifício com a fachada principal e a ala ocidental, com contributo do grande artista Gian Lorenzo Bernini.
Só no século seguinte seriam realizadas algumas intervenções, pois o Palácio não teve grande uso por parte dos Papas. Apenas Bento XV (1740-58) se voltou a interessar, com efeito, pelo complexo estival dos Papas, ordenando modificações, obras de manutenção e de decoração. Clemente XIV (1669-74) aumentou a propriedade, adquirindo a Villa Cybo, em 1773, ampliando os jardins originais, de Urbano VIII. Foi depois ocupado por tropas napoleónicas, que danificaram bastante o complexo do Palácio. Pio VII (1800-23) e Pio VIII (1829-30) ordenaram restauros depois dessas destruições dos franceses. Assim se manteria, de acordo com esse restauro, tendo sido utilizado de forma mais regular por Gregório XVI (1831-46) e Pio IX (1846-78), este pelo menos até 1870, quando se deu a reunificação italiana. Mas neste período oitocentista não se deixaram de efectuar melhorias no Palácio, refira-se.
Mas falámos da reunificação italiana: com esta deu-se o fim dos Estados Pontifícios e os Papas abandonaram Castel Gandolfo, como todas as outras residências papais fora de Roma, tendo-se enclausurado dentro das muralhas do Vaticano, em protesto contra o recém-formado Estado italiano, o qual em 1929 acabaria por aceitar a criação do Estado da Cidade do Vaticano, nos Acordos de Latrão. Castel Gandolfo e a vizinha Villa Barberini foram então declarados domínios extraterritoriais pontifícios, tendo o Palácio Apostólico que aqui recordamos renascido como residência estival dos Papas. Até hoje, diga-se. Com algumas obras e melhoramentos, claro, por exemplo a ligação das estruturas atrás referidas: Palácio, Villa Cybo, Vila Barberini, com respectivos jardins. Pio XI (1922-39) foi decisivo e empreendedor neste relançamento de Castel Gandolfo: além dessas obras e projectos aumentou as propriedades, criando uma estrutura agrícola em terrenos em Albano Laziale, unindo todas as propriedades pontifícias centradas no Palácio, anexando ainda o já citado Observatório Astronómico. Os actuais 55 hectares de propriedades foram por ele definidos e concretizados.
João Paulo II (1978-2005), Papa de boa memória, elegeu, carinhosamente, Castel Gandolfo como o “Vaticano Dois”, ele que foi um dos que mais apreciou o descanso estival na região. A oração dominical do Angelus, quando o Santo Papa por ali descansava, tinha lugar dentro do pátio do Palácio. Em 2010, a Audiência Geral teve mesmo lugar na praça exterior do Palácio, presidida por Bento XVI (2005-13), que ali residiu após a sua renúncia papal, entre 28 de Fevereiro e 2 de Maio de 2013 (actualmente reside no Mosteiro Mater Ecclesiae, dentro do Vaticano). Mas Castel Gandolfo, nos montes Albanos, longe do bulício de Roma, continua a ser o idílico lugar de descanso dos Papas, em beleza e retiro do mundo.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa