Os Santos Cosme e Damião

A Igreja e a Medicina

No dia 27 de Setembro a Igreja Católica celebra os Santos Cosme e Damião, mártires, irmãos gémeos que morreram c. 300, santificados pela Medicina que exerciam sem nada pedir em troca. Ainda que não se possa comprovar que foram médicos, a sua relação com a Medicina assim os alcandorou aos altares, sendo padroeiros dos médicos e das faculdades de Medicina, dos farmacêuticos, dos cirurgiões, mas também dos barbeiros. Quando nasceram, não se sabe, mas jovens morreram em odor de santidade e aura popular, na Cilícia (costa ocidental da Turquia), podendo ser provenientes da Síria. Além de salvarem vidas pela sua Medicina, a mesma era voluntária, sendo por isso santos “anárgiros”, ou seja, “inimigos do dinheiro”.

A sua hagiografia, a sua santidade, reporta-nos para uma das facetas da Igreja nem sempre recordadas ou melhor avaliadas, mas sem que a sua real importância esmoreça ou se mitigue na parca memória dos homens: a relação da Igreja com a Medicina, ou a Saúde, nas suas vertentes ou especialidades. Relação antiga, no entanto, muitas vezes a única capaz de assegurar a saúde pública, ou até privada, e durante muito tempo a única que apaziguou sofrimentos com origem em enfermidades rejeitadas pelos físicos ou até curandeiros, das doenças incuráveis ou malditas, como a lepra, as “peste”, as doenças mentais ou “males ruins” desconhecidos e marginalizados. Na própria história da Medicina foi debaixo do manto da Igreja até que se criaram meios e formas de cuidados de saúde pública e assistência aos enfermos, inovações houve pois que no seu seio foram experimentadas e dali irradiaram e se tornaram universais, como a separação dos doentes por enfermidades, com o português S. João de Deus (1495-1550, fundador da Ordem dos Hospitaleiros) a assumir pioneirismo. O cuidado com os leprosos, os mais enjeitados de todos os doentes de todos os tempos, uma das doenças mais macabras e culturalmente tidas como algo horripilante, foi quase sempre atribuição assumida da Igreja, que aqui, como na saúde em geral, materializa a sua vocação para o Outro, Alteridade já antes resumida singularmente no Evangelho, em S. Mateus (Mt 10,42): «Tudo o que fizerdes ao menor de meus irmãos, é a Mim que o fazeis». Em 1206, no processo de conversão, não fora S. Francisco de Assis (1182-1226) quem melhor exponenciara aquela passagem do Evangelho, quando se apeou do cavalo para beijar um pobre leproso mendicando na beira da estrada? «O que antes me era amargo, mudou-se então em doçura da alma e do corpo. A partir desse momento, pude afastar-me do mundo e entregar-me a Deus», revelaria mais tarde o Pobrezinho de Assis ao mundo. Na relação da Igreja com a Medicina, coevo de S. Francisco de Assis, poderíamos relembrar ainda que Pedro Julião Rebolo, ou Pedro Hispano (1215-1277), e João XXI (12761277), único Papa médico (segundo uma certa tradição, refira-se), são a mesma pessoa, de nascimento e família em Portugal. Célebre ficou pelos seus estudos e ensino sobre Medicina, muito populares no seu tempo. O genial Papa Silvestre II (Papa 999-2003) esteve também ligado à Medicina, que ensinou.

A prática da caridade consuma-se também na Medicina, na assistência aos doentes e nos cuidados de enfermagem, além do apoio aos “últimos fins” dos moribundos, o que enfatiza o papel dos Cristãos e da Igreja até ao século XVIII, senão ulteriormente, em que assumiram a predominância mais activa nesse múnus das boas obras de misericórdia, amparo e cura dos que padeciam em sofrimento. Não apenas do espírito, da alma, também do corpo a Igreja não descurou, o que fez de forma gratuita e piedosa.

Tertuliano, Clemente de Alexandria, Lactâncio ou S. Isidoro de Sevilha nos primeiros séculos destacaram-se nos estudos, vindo depois S. Bento com o monaquismo a redimensionar a assistência médica como uma obra da proverbial hospitalidade monástica beneditina. Bertário, Strabo ou S. Hildegarda de Bingen (na área da farmacêutica) coroam a plêiade de monges e monjas que estudaram ou difundiram conhecimento médico, filtrando textos clássicos, árabes ou judaicos, entre outros, transformando-os em “saber médico” e manuais de práticas de saúde, na escala de conhecimentos da Idade Média. A Escola Médica de Salerno é a mais antiga do ramo, na Cristandade, tendo estado ligada à Igreja, pois Alpuano (arcebispo de Salerno) e Constantino de Cartago, monge, lá leccionaram. Hipócrates e os médicos árabes eram traduzidos e ensinados, sistematizados, a par de Aristóteles, também por filósofos como S. Alberto Magno, dominicano, ou Roger Bacon, franciscano, na Baixa Idade Média. Mosteiros, conventos, hospícios, entre outras instituições caritativas sob a égide da Igreja, impulsionaram, século atrás de século, a actividade assistencial desta, a qual receberá, depois de S. João de Deus, um decisivo incremento com S. Camilo de Lellis (1550-1614), um santo italiano que como Francisco de Assis se tornou um incansável protector dos pobres, principalmente dos doentes, fundando hospitais e criando uma ordem religiosa com a vocação assistencial, os Ministros dos Enfermos (ou Camilianos), fundados em 1586 e activos até hoje. Muitas ordens religiosas têm cumprido este carisma da assistência médica aos doentes, como a Companhia de Jesus, que se destaca pelo papel exercido na investigação na Medicina, onde cintilam nomes como Athanasius Kircher na bacteriologia ou Christophe Scheiner na oftalmologia, entre outros. As Misericórdias portuguesas são ainda outra instituição de matriz cristã com marca perene e actuante na assistência hospitalar ou tratamento de doentes, por todo o império ultramarino.

Desde S. Cosme e S. Damião, como proposta de aperfeiçoamento espiritual, de salvação, pela caridade e pela obra de misericórdia de atender e ajudar os que sofrem, rostos humanos de Cristo, recordando outros em nome de muitos mais, o elenco dos cristãos que têm socorrido e ajudado os enfermos e enjeitados pela doença, é copioso e uma das mais belas facetas da herança e vivência da mensagem de Cristo ao longo dos tempos. Ou vivência da alteridade plena e humanizada, que se assume no cuidado aos que dependem mais da caridade do que deles próprios, mas tantas vezes esquecidos na roda do tempo.

 (*) Vítor Teixeira

(*) Universidade de São José

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