Desentendimentos lusitanos
Nem tudo eram rosas naquele “jardim à beira mar plantado” – como descrevia um panfleto informativo, numa clara analogia a Portugal.
Os breves dias que passei no kampung foram suficientes para que me apercebesse de uma notória divisão entre as hostes locais. De um lado, pontuava o Comité dos Pescadores, cuja figura de proa era o meu amigo Patrick Felix, um homem de sessenta e cinco anos, mas que aparentava quarenta, que me ofereceu alojamento em sua casa. No lado oposto, uma espécie de junta de freguesia, o denominado painel, composto por dez elementos e liderado por um regedor nomeado pelas autoridades provinciais de Malaca. As desavenças eram mais que muitas.
«– Os habitantes do bairro vivem na mais completa escuridão», comentava Felix. «– Os membros do painel tomam decisões entre si e apresentam relatórios de contas pouco explícitas. Se procuramos saber o que se passa, acusam-nos de sermos simpatizantes da oposição. Assim, com esse péssimo rótulo, não temos qualquer margem de manobra».
Falava-se de pessoas infiltradas na comunidade para em nome dela tirar proveitos pessoais.
«– A mim, por exemplo, consideram-me um forasteiro só porque não habito aqui», argumentava Harold De Melo. «– Sei que não gostam de mim porque digo o que penso. Estão no direito deles. Não posso, no entanto, admitir que me discriminem. Sou um De Melo. Sou tão português como eles».
Pelos vistos, o pescador era mais português do que certos elementos do painel. A começar pelo anterior regedor, Michael Young, de ascendência inglesa e sem qualquer antepassado luso, e ao contrário do que acontecia com gente de apelido holandês como Denker, Overee e Zuzartee. Tão pouco era luso descendente o ex-vice-presidente Michael Banerji, um bengali a quem acusavam de ter roubado material electrónico.
A propósito de oportunismos e apropriações indevidas, veio a lume o caso de uma senhora que se apresentara como portuguesa com o objectivo de conseguir um subsídio da Fundação Calouste Gulbenkian para comprar máquinas de costura, tendo em vista o ensino da arte do bordado junto das crianças do bairro.
«– O dinheiro recebeu-o, mas até hoje, e já passaram muitos anos, ainda não vimos nem máquina de costura nem aulas».
As críticas eram também dirigidas a elementos da comunidade prendados com estadias em Macau e Portugal «e que nunca se preocuparam em partilhar a sua experiência». Era referida uma personalidade local (entretanto falecida) que tivera bolsa para estudar Português e quando lhe pediram que ensinasse o que aprendera exigira dinheiro.
«– O mais grave – salientava Harold – é que esse senhor foi enviado para Lisboa em nome da comunidade, tendo por isso responsabilidades acrescidas».
Era precisamente devido à actuação do painel, «que está permanentemente a pedir donativos, por todo o país e até em Singapura, manchando o nosso bom nome», que os pescadores vinham a público reafirmar que não precisavam de esmolas. Apenas queriam salvaguardar o seu ganha-pão.
«– Nos, bai no mar anote e dia, nos nang pobri. Nussa riqueza está no mar», dizia Felix, em Kristang.
Como comprovativo dos pedidos indevidos, mostraram-me uma fotocópia com o relatório de contas de 1996, que esse órgão apresentava todos os anos por altura da Festa de São Pedro. Um dos itens, de uma lista de despesas que totalizava os 28 mil ringgits, claramente se descriminava um total de mil e 500 ringitts relativos ao «jantar e bebidas para o governador de Macau, mulher e 100 convidados em 28 de Outubro de 1995».
«– Já viu a vergonha!», insurgia-se Patrick. «– Esta lista correu toda a Malásia e Singapura, pois foi enviada aos doadores. Quem a leu poderá ter ficado a pensar que o Governo de Macau não quis custear o jantar de recepção e esteve dependente dos donativos que o painel foi pedinchar por todo o lado… Já viu a vergonha?!».
Na lista havia ainda outros itens que indignavam o pescador.
«– Já viu algum mendigo, cego ou doente mental no bairro?». Face ao meu negativo abanar de cabeça, replicou: «– Então porque é que insistem em apresentar contas de gastos em festas para pobres, atrasados mentais, cegos e velhos?».
Na brochura das festas desse ano os obséquios e agradecimentos estavam lá todos. Ao Governo local, ao chefe do departamento de turismo e até mesmo aos próprios investidores.
«– Não têm vergonha na cara», acusava Felix. «– Pedincham como se fossemos uns miseráveis. E fazem-no em nosso nome, o que é mais grave ainda».
Malgrado os protestos, o Comité parecia não encontrar grande receptividade junto dos restantes pescadores, que se mostravam apáticos. Por seu lado, o painel queixava-se da falta de cooperação dos pescadores.
«– Só lhes pedimos que tenham confiança», dizia-me George Bosco Lazaroo, elemento sénior dessa agremiação, figura respeitada na comunidade, acrescentando depois em tom paternal: «– Sabe, a maioria dos pescadores são iletrados».
Lazaroo, pai do Joe, compilava um dicionário de Português-Kristang, com mais de trezentas páginas mas não tinha ainda encontrado editor. A ameaça de desaparecimento do dialecto local era apenas um dos inúmeros problemas com que se defrontava a comunidade.
«– Aki nun teng eskola di português, nun teng mestre», desabafara um dia Patrick Felix, um dos malaqueiros que melhor falava o Kristang.
Recordo que nos programa das Festas de São Pedro, além do cardápio dos eventos, mensagens oficiais, agradecimentos e o espaço de publicidade aos patrocinadores, havia uma chamada de atenção para a necessidade de dinamizar a Portugis Medan – na altura administrada pela Associação de Investidores Portugueses Euro-asiáticos que a subalugava a terceiros que ali geriam restaurantes e esplanadas – e dar uso ao centro comunitário que se encontrava desactivado a «servir de palco a actos de vandalismo», como dizia Bosco Lazaroo.
Joaquim Magalhães de Castro