Os Kristang da Península malaia

Filhos de Chão de Padre

Muito antes da chegada dos portugueses povoavam Malaca inúmeros chineses, como o bem demonstra a animada e colorida chinatown. De entre o típico casario, assumem particular relevância as casas dos peranakhan (chineses nascidos no Estreito de Malaca) e dos baba-nonyas (chineses resultantes da miscigenação com os portugueses), transformadas em casas-museu, antiquários ou até pensões. Se era certo que chineses, indianos e malaios resguardavam, no centro histórico de Malaca, os seus mais antigos templos – respectivamente, Cheng Hoon Teng, que honra o almirante Zheng He, o templo hindu Sri Pogyatha Vinoyagar Moorthi, e a bela mesquita de Kampung Kling, de um estilo importado da vizinha ilha de Samatra – certo era que o maior cartaz turístico continuava a ser o Kampung Portugis, publicitado pelos estabelecimentos comerciais espalhados pela cidade que aproveitavam o exotismo dos luso-descendentes para tirar dividendos.

A tão apregoada “portuguese seafood”, cuja degustação era ponto assente entre os visitantes, longe andava de uma aceitável autenticidade. Mas isso pouco importava. Era deliciosa, os preços acessíveis e quanto baste a variedade, com a vantagem de poderem, os curiosos, assistir às actuações de dança e música luso malaia contactando de perto com uma distinta classe de gente, essencialmente pescadora, que teria todo o prazer em comunicar, se fosse caso disso, com o camerada portugi recorrendo ao papiá kristang, o crioulo local que alguns dos mais velhos ainda falavam.

Foi no Medan Portugis, a praça principal do bairro, que reencontrei o meu amigo Joe Lazaroo, entusiasta dinamizador da tradição musical portuguesa. Depois de uma bebida celebrativa no seu Restauran San Pedro, o mais antigo do bairro, inaugurado em 1977 – não resistindo o homem em cantar o Tia Anica acompanhado à viola – levou-me a uma das esplanadas locais para degustarmos os pratos típicos da cozinha local, toda ela fortemente condimentada. Falo do curry seku (caril seco, habitualmente de bife), do debal curry (caril de galinha ultra picante, “o caril do diabo”) e o curry kapitan.

Joe conduziu-me ainda à concorrência, ao Restauran de Lisbon, onde conheci o famoso Jorge Alcantra, que logo correu ao baú para retirar uma quantas fotos que me mostrou com orgulho. Ali estava, uns bons anos mais novo, no convés do Navio Escola Sagres, na companhia do comandante e demais oficiais, nas duas ocasiões em que a barca aí fizera escala nas viagens de circum-navegação, de 1984 e 1993. Mostrou-me ainda o livro com aguarelas de Roger Chaplet, que o comandante da barca do Infante lhe tinha oferecido, devidamente autografado.

Se na Malásia o bom nome, espírito jovial, a música e a culinária dos kristang eram sobejamente conhecidos, no bairro, em contrapartida, poucos eram os que tinham uma ideia do que realmente Portugal significava ou como pensavam e sentiam os portugueses. O contacto com os patrícios ocidentais limitava-se a encontros esporádicos com os raros visitantes que prometiam muito mas pouco faziam.

«– Estamos para aqui esquecidos», queixava-se Joe Lazaroo. «– Se não alterarmos esta situação, passaremos de museu-vivo a uma simples decoração folclórica para turista apreciar».

Era o apelo que todos faziam, sempre que tinham oportunidade. E quem estivesse disposto a ouvi-los ficava com as orelhas a arder.

Um lugarejo de setenta habitantes com casas de chão de areia distribuídas por doze hectares a três quilómetros do centro da cidade, assim era o Kampung Portugis original, louvável iniciativa de dois missionários, em 1930. Daí o local ser inicialmente conhecido como Chão di Padre. Em jeito de homenagem, as ruas do peculiar bairro adoptariam os apelidos de cinco ilustres personagens da história de Malaca: Albuquerque, o conquistador; Sequeira, Diogo Lopes Sequeira, o primeiro navegador luso a pôr os pés na cidade, em 1509; Teixeira, oficial enviado a terra para oferecer presentes ao sultão; Araújo, soldado aprisionado juntamente com Sequeira; e, finalmente, Eredia, Manuel Godinho Eredia, o malaqueiro instruído, que, em 1615, escreveu uma história da cidade. Os lusos apelidos subsistiriam com as famílias; sobreveio depois a miscigenação com as nonyas – mulheres de famílias chinesas estabelecidos na Malásia e que perderam as suas raízes com o Império do Meio – mas isso seria outra história. Para que conste: foi da união matrimonial entre portugueses e chinesas da Malásia – que se deslocariam posteriormente para Macau – que surgiriam os primeiros macaenses.

Não se pense que a ramificada e abundante descendência dos homens de Albuquerque tenha permanecido no perímetro delimitado pela rua principal e as quatro transversais que retalhavam o Chão di Padre em casas com pequenos jardins e imagens de santos populares nas paredes. Ela espalhou-se por toda a Malásia, gozando hoje de excelente reputação. Os kristang são conhecidos pelos seus dotes culinários e artísticos e pelo seu espírito galhofeiro. Ocupam, no País e em Singapura, as mais diversas actividades profissionais – políticos, funcionários públicos, médicos, músicos, actores e jornalistas. Pude comprovar isso mesmo folheando o jornal diário em língua inglesa The Sun. Na primeira página, a analista de política, Claudia Theofilo, relatava mais um caso de corrupção que viera recentemente a lume. No verso, Neville de Cruz falava-nos de um político malaio acusado de dever dois milhões de dólares australianos contraídos em dívidas por causa do jogo, e, a página três, Martin Carvalho registava, a partir de Malaca, os comentários proferidos por um dos embarcadiços malaios feitos reféns por piratas indonésios, uns meses antes. A jornalista Anna Maria, por sua vez, analisava o recrudescimento das doenças cardíacas na Malásia, enquanto a sua colega Claudia Lopez apontava o dedo às deficiências existentes no sistema de abastecimento de águas nos centros urbanos e o repórter Nelson Fernandez entrava em detalhes sobre um crime de foro comum. No suplemento de Economia, Phillipe Reis tecia comentários sobre a débil situação do ringgit, e na secção do desporto Aloises Francis e Graig Nunis traziam-nos as últimas do futebol e do atletismo malaio.

Todos esses jornalistas eram filhos di Malaca que deixaram o bairro português (muito provavelmente já nem falam a língua dos seus antepassados) e partiram para as grandes cidades. A sua preponderância na sociedade é tal que, é à minhota que traja uma das quatro raparigas que interpretam o hino nacional malaio no fecho da emissão do canal televisivo estatal. As outras três envergam a veste tradicional malaia, chinesa e indiana.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *