Os Kristang da Península Malaia

Preocupações de Lancelote

Todas as aldeias malaias possuíam um centro comunitário, onde os dirigentes se reuniam e onde se realizavam as mais diferentes actividades sócio-culturais. Como se compreendia então que o bairro português não tivesse algo de semelhante?

O painel não só reclamava a responsabilidade pelo local, para assim poder dinamizá-lo, como chamava a atenção para a urgente recuperação do terreno, pertencente ao bairro, onde, há mais de cinquenta anos, estavam instalados alguns edifícios alfandegários. A luta pela obtenção do completo estatuto de bumiputra (filhos da terra), apanágio da etnia malaia, era outro dos seus cavalos de batalha. Esse regime, que os descendentes de portugueses possuíam parcialmente (indianos e chineses imigrados não usufruíam dele), pois habitavam a Malásia desde o século XVI, permitir-lhes-ia mais regalias e maior segurança quanto ao seu futuro.

Todas estas desavenças acabariam por gorar alguns dos projectos que a comunidade mais ansiava. Entre eles, o embelezamento do bairro – com calçada à portuguesa, coreto, arco, bancos públicos – iniciativa conjunta da última administração portuguesa de Macau e da Comissão Territorial para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses em Macau. Do enclave tinham-lhes enviado uma missiva informando-os da impossibilidade de ir avante com as obras devido à dificuldade em transferir o dinheiro para Malaca.

«– Essa atitude deixou-nos profundamente desgostosos», desabafava Bosco Lazaroo. «– Agora, nem sabemos como enfrentar a população, que estava a contar com esses melhoramentos…»

O painel manifestara a sua desilusão pelo cancelamento da empreitada numa carta enviada ao presidente Jorge Sampaio, cuja fotocópia se encontrava exposta numa vitrina em lugar público.

Mas nem todos estavam descontentes. Na opinião de Patrick Felix, Macau fizera bem em não transferir o dinheiro, pois assim não caia «nas mãos erradas». Se as autoridades e instituições da Cidade do Santo Nome de Deus quisessem fazer algo para dignificar a praça, dizia ele, «então que o fizessem in loco». Era mais seguro e apropriado. Mais: os pescadores estavam convencidos que a «mudança de atitude» de Macau se ficara a dever às cartas que eles remeteram aos diversos organismos do território.

«– Pessoalmente (confessava Patrick Félix) cheguei a enviar uma carta ao governador de Macau pedindo-lhe que não transferisse o dinheiro. Junto enviei fotocópias dos artigos publicados nos jornais sobre essa matéria».

O que se passara no bairro português tivera repercussões em toda a Malásia, com as notícias mais polémicas a serem vinculadas através da Imprensa chinesa, com maior margem de manobra.

Michael Francis Gomes, tesoureiro desde 1992, ano em que o painel fora oficialmente registado, mostrava-se pragmático:

«– Temos de estar sempre do lado de quem ocupa a cadeira do poder. Hoje é o dr. Mahathir que governa a Malásia, por isso estamos de corpo e alma ao seu lado. Se amanhã a oposição for Governo, então mudaremos de camisola».

Gomes justificava a atitude de camaleão com a «nossa condição de minoria», caso contrário, «seremos acusados de pactuarmos com a oposição», rótulo nada abonatório nos dias que corriam, verdade seja dita.

Conversávamos na sala de estar da sua casa. Na parede, uma fotografia de Gomes a ser condecorado por um membro do Governo.

«– Veja com os seus próprios olhos», dizia ele, mostrando-me facturas, donativos e até cheques bancários, como se eu fosse um fiscal das finanças. «– Fomos inspeccionados três vezes pelo departamento governamental contra a corrupção. Tudo está regularizado. Não temos nada a esconder».

Gomes tomaria ainda a liberdade de me dizer que a conta do grémio tinha um saldo positivo de 90 mil ringgits, montante disponível «a todos membros da comunidade, sempre que necessário e recorrendo às habituais formalidades».

Na sua opinião, os elementos do comité dos pescadores «estavam a ser incitados por elementos da oposição que os utilizavam para fazer propaganda contra o Governo».

Dizia ele:

«– Eles gostariam que lhes entregássemos o dinheiro para as mãos, mas não pode ser assim».

Apesar destas asserções, o certo é que os anseios dos pescadores encontravam eco e simpatia junto dos descendentes de portugueses de Kuala Lumpur. E as baterias, neste caso, não se dirigiam apenas contra o painel mas também contra a Associação de Investidores Portugueses Eurasiáticos, liderada pelo magnata Eugénio Campos, cônsul honorário de Portugal na Malásia.

«– Fartam-se de dizer que tencionam construir uma grande unidade hoteleira junto ao bairro português para dar trabalho aos residentes locais, mas é tudo mentira», afirmava o guitarrista da banda que animava as noites do Country Barn, espaço nocturno da capital malaia, muito frequentado por luso-descendentes.

«– Também prometeram aos pescadores um barco de grandes proporções para que possam pescar no mar alto, mas tudo não passa de promessas ocas, sem qualquer credibilidade».

Estas constantes guerras e a falta de união, característica tão lusitana, afinal, desencantavam o padre Lancelote Rodrigues, ilustre malaqueiro de 84 anos que vivia em Macau desde 1935, onde prestou inegável serviço aos refugiados vietnamitas na década de 90, os designados “boat people”. Aos defeitos da corrupção e da intriga que padeciam os seus conterrâneos, acrescentava o da preguiça. E, por isso mesmo, Lancelote receava pelo futuro da comunidade kristang, entre outras coisas.

Joaquim Magalhães de Castro

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