Mercenários, casados e os religiosos
Esta semana continuamos a contar com o contributo do historiador Manuel Lobato, concentrando agora a nossa atenção nos portugueses que conseguiram criar, consolidar e gerir uma feitoria-fortaleza no Sirião, no sul do actual Myanmar, e sob os auspícios do rei do Arracão, senhor de uma região situada a norte, nas imediações do actual Bangladesh e que em finais do século XVI e inícios do século XVII constituía o mais poderoso monarca da região. A primeira questão que colocamos ao nosso entrevistado relaciona-se com a quantidade de pessoas que residiram nessa fortaleza. Certamente eram poucas, porém, a partir de uma determinada altura, receberam consideráveis reforços graças à chegada de três ou quatro navios portugueses originários de Goa e com destino à costa do Coromandel mas que aproveitavam para fazer uma extensão ao Golfo de Bengala. Actividade protagonizada por gente que «andava à solta», actuando por conta própria, o mais longe possível do controlo da Coroa lusitana. Devem ter chegado a viver naquele fértil delta do rio Irruadi mais de duzentos portugueses. Se a eles juntarmos as respectivas mulheres e os filhos estaremos a falar de um universo de quase um milhar de pessoas. Tratava-se de mulheres locais, pois esse era já «uma terra de aventureiros» como bem realça Manuel Lobato. «É gente que vem atraída pela notícia muito difundida que naquela área se estabelecera uma colónia portuguesa que, inclusive, ambicionaria a conseguir um estatuto oficial, mais tarde ou mais cedo, junto do Estado da Índia. É gente, portanto, que chega ali disposta a assumir a confortável posição de casado».
A verdade é que se o projecto tivesse singrado, ou seja, se o Sirião se tivesse transformado numa cidade inserida na rede mercantil portuguesa, isso traria a «esses fundadores um prestígio social recheado de privilégios, tais como aqueles que existiam em Goa». Na capital do Estado da Índia os “casados” usufruiriam dos forais e de privilégios «similares aos dos homens bons de Évora». Esse tipo de benesses permitiria aos ditos aventureiros reproduzir, de facto, na Ásia, do ponto de vista português, um modo de vida e uma condição social muito elevada, ao mesmo tempo que acumulavam com o seu outro status asiático, adquirido graças aos seus conhecimentos das técnicas e estratégias militares. Como afirma o nosso entrevistado, «estes homens são verdadeiros intermediários. Estão na fronteira de duas culturas e de certo modo mantêm um estatuto ambíguo. Um estatuto que é português, sem dúvida, mas que não deve ser olhado como tal porque eles, entretanto, tinham adquirido também um estatuto asiático, por via do casamento e tudo a que a ele, em termos sociais e políticos, vem associado».
Já aqui se falou de Salvador Ribeiro de Sousa e de Filipe de Brito de Nicote, mas poder-se-iam referir muitas outras figuras do género. Alguns desses homens tinham larga margem de manobra e vasta influência em vários locais da baía de Bengala, estendendo-se a sua fama até às mais diversas secções da costa da Índia, sobretudo ao norte do Coromandel. São homens que mantinham ligações institucionais com o Estado da Índia e entre os quais normalmente circulavam padres e missionários que também moviam influências, por via das ordens religiosas que estavam muito bem representadas em Goa. Não esqueçamos que se vivia uma época – finais de século XVI e inícios do século XVII – em que a manobra das ordens religiosas e a influência por via dessas ordens era muito importante. Como afirma Manuel Lobato, «os missionários são um pouco o cimento dentro destas comunidades. São eles que, no fundo, organizam um pouco a vida social através das práticas religiosas, dos casamentos, dos baptizados, das confissões, inclusivamente da própria actividade financeira». Eles são ainda, muitas das vezes, prestamistas, pois garantem empréstimos e transferências de dinheiro de um lado para o outro, e, portanto, têm um papel múltiplo nas actividades mercantis. É através destes missionários que alguns destes homens se conseguem projectar no centro do poder que está em Goa ou até em Portugal. Prova disso, é o facto de a biografia de Salvador Ribeiro de Sousa ter sido escrita em Castelhano, numa época da União das Coroas, visando um público – ou seja, uma atenção ao nível das camadas públicas – não apenas de portuguesas, mas situada também na sede do poder em Madrid.
Voltando ao terreno… É sabido que naquela época, e naquela conjunctura, havia sempre portugueses em campos opostos no decorrer das muitas batalhas. Tal facto não passava inteiramente despercebido e os seus intervenientes tinham imensa dificuldade em lidar com isso, pois eram compatriotas e, nalguns casos, até antigos companheiros de armas. Contudo, o compromisso que assumiam com os reis locais obrigavam-nos a combater por vezes no lado contrário da barricada. Acontecia que, não raras vezes, eles entendiam-se entre si e ocasiões havia até em que mudavam de campo, se tal se mostrasse conveniente para eles. Aqueles reis, sobretudo os mais fragilizados, que repousavam no poderio bélico destes mercenários que compunham a sua guarda pretoriana, acabavam por cair nas suas mãos e, por vezes, não conseguiam opor-se aos objectivos políticos destes mercenários extremamente ambiciosos e disponíveis a entenderem-se com os compatriotas presentes no campo oposto. «A traição aqui é uma traição entre aspas pois eles nunca se sentiam, relativamente a reis que não eram cristãos, completamente obrigados», comenta Manuel Lobato. Há casos conhecidos dessa prática de mudança de campo e dessas práticas que quando dois reis se vão enfrentar os mercenários acabam por resolver eles as próprias situações, por vezes até sem conflito, precisamente por não desejarem a desagradável situação de se combaterem mutuamente. Estes mercenários muitas das vezes funcionavam melhor na guerra defensiva, isto é na protecção do rei, do que propriamente nas grandes campanhas e nas grandes ofensivas. E há exemplos disso, nomeadamente na defesa de algumas cidades, como é o caso de Ayutthaya, no Sião. «Há casos evidentes que a cidade não caiu devido à artilharia e ao poder de fogo dos mercenários portugueses aos serviços do rei do Sião», lembra o historiador.
É muito possível que Salvador Ribeiro de Sousa tenha trazido uma fortuna apreciável do Oriente. E terá arrecadado a fortuna porque o Sirião se manteve sempre, apesar de toda a conturbação política e militar, como uma porta de entrada para uma larguíssima área do interior, quer para exportação de arroz, madeira e benjoim, quer para a importação de armas e de muitos produtos que eram trazidos de outros locais. Os portugueses funcionavam como intermediários e esse negócio permitia-lhes enriquecer. Como lembra Lobato «se Salvador Ribeiro de Sousa foi, de facto, rei, só em presentes e tributos cobrados durante o seu exercício de poder dariam para arrecadar uma fortuna». Recorde-se que ele esteve à frente do Sirão durante três anos, embora quase permanentemente em estado de guerra, o que não impede que algum comércio tenha sido efectuado, embora em períodos limitados. O cronista diz-nos que o trato esteve interrompido no período em que a fortaleza esteve sitiada, mas sempre que isso não aconteceu houve oportunidades para efectuar trocas e até franquear o porto.
O grande protector do Sirião é o rei de Arracão que momentaneamente é o monarca mais poderoso da região. Quando o poder do Pegu se afunda – e o do Sião também, pois fora conquistado previamente pelo primeiro e estava numa situação de inferioridade – o grande rei é o de Arracão. A prova de que a relação entre ele e os mercenários portugueses foi frequentemente conflituosa é o facto de Filipe de Brito ter sido capturado e morto em 1613, por empalamento, dando origem ao desaparecimento da fortaleza de Sirião. Nessa altura Salvador Ribeiro de Sousa estava já em Portugal. Não há relato nenhum que fale desse regresso, mas o cronista diz-nos que ele teria chegado ao Sirião pouco depois de ter feito uma tentativa gorada de embarcar para Goa e para Portugal onde iria requerer as mercês de serviço militar. O seu desejo de regressar é anterior aos acontecimentos, após três anos à frente dos destinos do Sirião. Regressou a Lisboa mas não é seguro que tenha regressado a Guimarães, a sua terra natal. Sabe-se que tinha residência em Alenquer e tinha uma forte ligação com os Franciscanos, o que lhe poderia granjear algum cargo municipal numa vila que era prestigiado e nobre. «Se voltou a Guimarães não foi para ficar», remata o nosso investigador.
Joaquim Magalhães de Castro