O registo da História do Catolicismo na Cochinchina

De diocese para diocese

Companhia regular dos mercadores portugueses que começaram a arribar às costas do Vietname a partir de 1527, os missionários dominicanos lograram estabelecer ali uma missão em 1596, vinte anos após a fundação da diocese de Macau, onde tinham casa desde 1587. Contudo, só quando os jesuítas foram autorizados a entrar nos reinos de Anam e Tonquim é que o Cristianismo ganhou verdadeira solidez. Corria o ano da graça de 1615. Vindos do Japão, donde tinham sido expulsos, chegavam à feitoria portuguesa de Hoi An, Francisco Buzoni, napolitano, e Diego Carvalho, português, ambos padres jesuítas. Com eles vinha António Dias, leigo português, e Joseph Paul, um japonês convertido. Estava dado o passo definitivo para a consolidação da fé católica no Vietname. A construção da primeira igreja coincide «com a fundação da paróquia de Hoi An, em 18 de Janeiro de 1615», como precisa Le Nhu Hao, um padre já bastante idoso.

Le Nhu Hao é um padre viajado. Ordenado em 1954, fez estudos teológicos em Saigão e nos institutos católicos de Paris e Roma. De Portugal recorda a capital e uma visita a Fátima que lhe «ficou gravada na memória». Hao aproveita o ensejo para lembrar que o Vietname é um dos três países no mundo onde o culto mariano tem mais expressão. A Polónia é o primeiro e o México o segundo.

«A vossa virgem é adorada em todas as igrejas do Vietname», diz a propósito, enquanto bebemos chá na sala onde exerce as funções do pároco ausente. De facto, nas paredes e numa das colunas da igreja, que sustenta a estátua de Nossa Senhora de Fátima alumiada por um néon fosforescente que forma as letras do Avé Maria, há inúmeras placas de mármore evocativas onde os fiéis expressam os seus agradecimentos à Virgem. “Duc me”, “Merci Fátima”, “Ca Mon Fátima”. Agradecimentos em Francês e Vietnamita estão um pouco por todo lado.

Os católicos locais têm por hábito acordar bem cedo. A igreja abre as portas das 4 horas e 30 às 6 horas e 30 da manhã. A missa celebra-se às cinco. E sempre que há funeral a vizinhança acorda ao som de uma banda de música. Particularidade do Vietname: o luto demonstra-se com música e roupa branca. «O Catolicismo no nosso país assimilou muitas das tradições budistas», conta Le Nhu Hao. No dia anterior tinha sido testemunha de uma cerimónia que confirmara estas palavras. Convidado a sentar-me junto a um grupo de amigos do defunto que faziam o velório bebendo café e comendo uvas e biscoitos em alegre cavaqueira, tivera a oportunidade de assistir a um interessante ritual. Tratava-se de um velório católico. Os elementos, porém, eram orientais. Cenário profundamente ligado ao culto dos mortos. Cristãs só mesmo as velas, as imagens de Cristo e da Virgem, duas freiras que ali estavam e as cruzes brancas destacando-se dos veludos negros colocados à entrada e por detrás do caixão de madeira. Tudo resto era de inspiração budista sino-vietnamita: os paus de incenso a arder junto à foto da defunta; as oferendas embrulhadas em celofane amarelo e vermelho – cores sagradas – as flores, o arroz e os tabuleiros com frutos; a fita branca em volta da cabeça e as vestes alvas dos participantes. Na madrugada seguinte, depois da missa cantada, lá seguiu o funeral pelas ruas da cidade, abrilhantado pela banda de música vestida a rigor. Uma maneira diferente de ver a morte. Poder-se-ia dizer um “funeral muito pouco católico”. Vietnamita, sem margens para dúvidas.

O padre Hao nunca esteve em Macau. Mas sabe muito bem da sua importância para a propagação do Cristianismo no Vietname. «A maioria dos padres enviados para ajudar a missão de Hoi An, liderada por Buzoni, vieram de Macau», conta. E cita nomes: Fernando Barreto, Francisco de Pina, Pedro Marques, Cristoforo Borri, etc. «O próprio Buzoni», continua o sacerdote, «no ano de 1639, enviado pelo soberano vietnamita, foi a Macau para interceder junto do governador no sentido de intensificar as trocas comerciais entre os dois territórios».

Le Nhu Hao tira livros das estantes. Vários volumes sobre a história do Catolicismo no Vietname. Em Francês, Inglês e Vietnamita. «Buzoni acabou por morrer, de doença, durante essa viagem a Macau», informa. Vinte anos depois de ter chegado a Hoi An. O seu colega, Diego de Carvalho, fora martirizado anos antes, no Japão. A morte de Buzoni fez com que os jesuítas regressassem todos a Macau.

Questionado sobre possíveis vestígios da presença portuguesa em Hoi An, o padre Hao abana a cabeça. «Tudo o que havia», recorda, «era os túmulos de missionários que estavam sob a alçada da igreja». Havia um guarda que, «por mil piastras e dez quilos de arroz mensais», vigiava o pequeno cemitério. Os túmulos acabaram por ser arrasados, tendo surgido no seu local uma plantações de arroz. «Ainda tentei transferir os corpos para o terreno da igreja», diz o clérigo, «mas foi em vão».

«Custa-me a acreditar nisso», diz o padre Le Nhu Hao. «O cemitério dos cristãos foi totalmente destruído. Em seu lugar há agora uma pocilga. Veja lá!».

O padre Le Nhu Hao é também escritor. Interessa-lhe sobretudo a investigação. Tem vários livros escritos à máquina. Em folhas finíssimas, quase transparentes: o sumo dos anos de prisão domiciliária. «Grande parte dos livros da minha biblioteca foram confiscados ou mesmo queimados», conta ele. Muitos deles eram vendidos aos comerciantes que utilizavam as folhas para embrulhar arroz e legumes. «Quando queria recuperar algum livro tinha de ir ao mercado em busca das folhas soltas, e comprá-las».

Hao não perdeu ainda a esperança de publicar os seus escritos, «para que todos os paroquianos possam aceder à história do Catolicismo no Vietname». Além de ter escrito a história da Diocese – transferida, em 1963, para Danang – redigiu ainda vários volumes sobre «vida de santos», «relatos de viagens» e traduziu várias obras literárias de Victor Hugo, escritor que goza de um estatuto privilegiado no Vietname.

Hoje, passados 424 anos após o pedido de Buzoni, da Cochinchina chega novo apelo a Macau. No caso, à diocese de Macau. «Era bom que pudesse publicar algum desses meus trabalhos. Acha possível? Pode, por favor, transmitir-lhes essa minha vontade?» – pergunta o sacerdote Le Nhu Hao.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *