A maçã mordida da Apple
A Apple tem um símbolo universal que nos envia imediatamente aos desafios primordiais do Génesis, os do saber “divino”, não permitido, escondido, “ilícito”: a maçã mordida de Adão e Eva. E é a propósito do saber que escrevo esta crónica.
O mundo viu surgir, desde há menos de quatro décadas, uma nova galeria de personagens, construtores de um tempo diferente, num espaço (urbano, pois tudo passou a ser urbano) diferente.
E se os mais novos se adaptaram imediatamente ao novo contexto, os mais velhos tiveram que, real ou simbolicamente, voltar aos bancos da escola, para reaprenderem as regras básicas do viver e do conviver nos novos tempos.
E o mundo entrou-nos em casa, seja a de uma avenida elegante na grande cidade, ou a casa aldeã em qualquer lugar recôndito, já ligado ao novo sistema sanguíneo da informação permanente.
Co-construtor dos novos tempos, Mark Zuckerberg é hoje um dos jovens gurus da modernidade. Por isso ouvi-lo é essencial. Não apenas para falar desse prodigioso brinquedo que criou, o Facebook, mas para o ouvir falar das consequências imediatas e duradouras (do anjo ou da besta) que saiu do seu cérebro e das suas mãos.
Em torno do seu longo depoimento no Congresso dos Estados Unidos, o que esteve verdadeiramente em causa foi como é que se podem repensar sociedades – todas – julgadas mais ricas pela partilha constante da informação, mas indefesas porque mais vulneráveis.
E sobretudo que opções éticas fundamentais se norteiam essa partilha híper-generosa de saber.
ABERTO O CAMINHO POR BILL GATES…
…com a sua Microsoft, os novos heróis da modernidade chamavam-se ou chamam-se Steve Jobs (Apple), Jeff Bezos (Amazon), Howard Schultz (Starbucks), Pierre Omidyar (Ebay), Jack Dorsey (Twitter)… e (last but not the least) Jack Ma, o grande Jack Ma… e todos os mais que a Ásia e concretamente a China, como aliás a África, a América Latina, a Europa, a América do Norte, tiverem para revelar.
E o que é que aprendemos com esses novos heróis da comunicação e do universo empresarial?
Aprendemos a urgência de mudar, o imperativo de nos pormos em causa, o desconfiar do status quo ou o vê-lo como etapa apenas da caminhada, as vantagens de uma hierarquia social baseada nos novos saberes e não em posições entrincheiradas de poder, real ou simbólico.
Antigamente os velhos sabiam tudo e competia-lhes ensinar aos jovens o tudo que sabiam. Com o advento da Internet a situação quase se inverteu, pelo menos no espírito de muitos, e a posse de um smartphone (ou de um tablet ou laptop) tornou-se o símbolo de uma nova ordem social, marginalizando agora os analfabetos da computação, normalmente os mais idosos.
Computer illiteracy – recordava eu, há dias, aos meus alunos, quer o conceito, quer os seus malefícios, pois quem não soube ou não pôde acompanhar a evolução e se foi tornando estranho aos conteúdos online, ergueu uma cortina escura entre si e o mundo.
Mas, curiosamente, as novas tecnologias da comunicação expandiram-se tão rapidamente no planeta que o capital decisivo do Facebook e congéneres se define mesmo pela largueza desse império de informações pessoais que, no caso de Zuckerberg e associados, se situa nos dois mil milhões de pessoas!
De tudo isso e de muito mais foi falar Mark Zuckerberg aos congressistas em Washington.
QUE SÉCULO XXI?
O longo depoimento de Zuckerberg perante comissões das duas câmaras do Congresso americano, não foi o espectáculo habitual de esgrima oratória que tem regularmente ali lugar.
Foi muito mais do que isso. E foi de uma enorme relevância. Pois tratou-se de um encontro de homens e mulheres já bem passados da idade do idealismo, e perante eles um jovem talentoso que podia ser filho ou neto de muitos. E que lhes foi falar da sociedade diferente que, com outros da sua geração, ele está a construir, para um futuro que já não será o de nenhum deles.
Uma sociedade que viu os seus espaços tradicionais de privacidade invadidos, através da Internet. E as suas instituições sociais mais importantes sacudidas pelas complexas mudanças de comportamentos, modos de pensar e de interagir.
Mudança é de facto a palavra chave. Mudança que as mensagens pessoais online, a publicidade online, o comércio online, a cultura online, a ideologia online vão acelerando, todos os dias.
Uma sociedade onde a praça pública deixou de ser física para estar localizada num lugar imaginário, onde as pessoas se encontram sem se encontrarem; onde, sem se verem ou se tocarem, comunicam entre si, como nunca antes.
E onde trocam ideias que estimulam a comunhão de ideais ou a divisão das rivalidades históricas ou recentes; o amor ou o ódio; a tolerância ou o preconceito – tudo como antigamente, no viver habitual das comunidades, mas agora à escala planetária.
Foi gritante o desfasamento de gerações entre a única testemunha desse processo, um jovem quase apenas chegado à sua vida adulta, e a gerontocracia de uma vetusta instituição política, o parlamento americano, onde muitas das carreiras dos ainda deputados se iniciaram antes do nascimento do fundador da Facebook.
Será que se falou ali a mesma linguagem? Seguramente que sim. Porque o que estava e estará cada vez mais em causa, a partir de agora, desta aventura da Cambridge Analytica e suas ramificações, é a questão de como é que esse estranho universo das comunicações digitais nos permite viver melhor e não pior, com mais segurança e não com mais receio, com maior protecção das nossas existências e não o oposto.
OS DESAFIOS DO UNIVERSO FACEBOOK
Ou twitter… já que o inefável Donald governa as “fake news” do seu “fake world” através desse outro media da concorrência… O mesmo Donald que inaugura a presidência aberta com as suas mensagens digitais a propósito de tudo e de nada.
Os desafios estão à vista e foram o tema central das sessões no Congresso: sociedades mais vulneráveis, cidadãos mais desprotegidos e as comunicações entre pessoas, relativas ao seu simples viver quotidiano, objecto de apropriação comercial abusiva.
E sobretudo a capacidade de tais informações serem usadas para fins políticos, no interior dos países ou a partir de fora, como terá acontecido com a interferência estrangeira em vários processos eleitorais.
O longo depoimento de Zuckerberg demonstrou o quanto custa ao mundo o seu sonho fundador, o de uma sociedade onde as pessoas comunicam entre si mais facilmente.
As melhores intenções são pervertidas e um mero jogo social pacífico logo se transforma em campo de batalha.
Sem opções éticas fundamentais, bem e mal não se distinguem… excepto nas consequências tardias.
Carlos Frota
Universidade de São José