O Nosso Tempo

“Eu em vós, vós em mim…”

Imaginemo-nos sentados em redor de um velho contador de estórias, debaixo de uma frondosa e multissecular árvore africana, dessas que desafiam raios e tempestades. E, sobretudo, sobrevivem ainda à fúria cega das serras eléctricas, armas preferidas pelos assassinos de florestas.

O velho sábio, de barbas brancas (tem de ser assim, para a estória ser “autêntica”…) ergue a voz trémula e conta:

Um dia o homem branco veio aqui e as crianças da aldeia receberam-no muito bem. Ele quis recompensar os meninos e meninas e, afastando-se para longe desta árvore, debaixo da qual estamos sentados, disse às crianças: «– Vou pôr ali debaixo da árvore um bolo muito bom, muito doce e com muitos frutos . Os meninos correm todos ao mesmo tempo, quando eu der sinal de partida, e o primeiro a chegar fica com o bolo só para si».

Assim se fez. Mas quando deu o sinal de partida todas as crianças deram as mãos. E, chegando ao mesmo tempo, repartiram o bolo entre todas.

Estória bonita de solidariedade, não é?

Se contar isto a seu filho ou a seu neto, à hora de dormir, ele ou ela agradece, beija pais ou avós e, agarrado ao travesseiro, talvez sonhe com um mundo de pessoas boas.

Se contar isto aos adultos, alguns talvez se interroguem sobre como construir o mundo com estas ideias boas.

Esta é sabedoria africana. Isto é… ubuntu.

 

A palavra mágica

Ubuntu, sabem o que significa? Eu também não sabia… até há muito pouco tempo. E a sua “descoberta”, digamos assim, foi para mim, mais uma vez, a confirmação de quanto o diálogo entre civilizações, e não o oposto, é fundamental ao futuro da nossa comum humanidade.

Uma palavra mágica. A primeira vez que ouvi a palavra “Ubuntu” foi da boca de um homem que, não sendo líder religioso (nem personalidade reconhecida pelas suas lucubrações filosóficas, excepto no seu domínio muito próprio), é um homem a todos os títulos excepcional.

Refiro-me ao fundador do grande empório mundial dos cafés Starbucks, Howard Schultz. E a razão que o torna excepcional não é a de ser um milionário, à frente de um dos exemplos de maior sucesso do mundo empresarial, à escala global.

O que o torna invulgar é como, pobre e filho de pobre, nascido num bairro social de Brooklyn, chegou lá. E o que tem provado com a sua vida? Como uma filosofia impregnada de valores humanos pode ser a chave do êxito comercial o mais retumbante.

Na escala de valores das multinacionais com o mais alto padrão no cumprimento das suas responsabilidades sociais globais, a Starbucks tem lugar cimeiro. O sucesso da Starbucks é, há muito, um caso de escola, estudado nas faculdades de gestão de empresas de todo o mundo. E foi exactamente através da docência universitária que cheguei ao conhecimento de Howard Schultz e do seu impressionante legado. Que transcende as meras técnicas de gestão, para nos fazer regressar à crença nos valores fundamentais do Homem.

 

“Eu em vós, vós em mim…”

Mas qual o axioma fundamental da filosofia ou teologia, como lhe chamam o arcebispo D. Desmond Tutu e outros cultores de tal pensamento?

Que a humanidade de cada um é conferida pela comunidade. Eu em vós, vós em mim. Não há pessoa sem ser na comunidade. Eu sou o que sou, porque vocês me reconhecem no que sou, como sou.

Quando isto é assumido no plano individual o que dá? Cidadãos empenhados, participativos. E no plano empresarial leva-nos a um sistema económico com alma, porque não só não esquece a PESSOA, como vive orientado para ela.

O individualismo frio, soberbo, indiferente aos outros, em que parece fundamentar-se e só a lógica dos mercados, pode dar assim lugar à belíssima aventura humana da partilha. Não se está em busca de uma certa forma de capitalismo moral, ético? Pois aí temos.

Vêm tais ensinamentos de uma outra civilização, onde a desumanidade da competição global, nacional, comunitária, pode ser superada pelos laços mais fortes da partilha e da entre-ajuda?

Apreender com os outros. Aceitando o contributo dos que durante milénios viveram a vida pensando directamente com o coração e a cabeça, e não através do smartphone, do robot, da Internet.

 

A Igreja e o Mundo

A Igreja interpretou bem, na década de sessenta do século passado, a necessidade de promover a compreensão e o diálogo de crenças e culturas, como traves mestras para a sua intervenção no mundo.

Os documentos mais significativos para mim, saídos do Concílio Vaticano II, mesmo para além dos dogmáticos que li superficialmente, com manifesta falta de preparação teológica para aprender todo o seu significado, foram sem dúvida os que trouxeram novo olhar às relações da Igreja com o mundo, com outras religiões, culturas e civilizações. E por isso estive sempre ávido das notícias sobre os eventos que mais têm marcado o ecumenismo dos Papas pós-conciliares. Não para escandalizar amigos mais tradicionalistas, mas porque vejo sempre, por exemplo, nos encontros inter-religiosos, uma prefiguração da humanidade que se respeita na sua diversidade.

Felizmente a vida levou-me a conhecer gente muito diversa, de muitas lugares, culturas e civilizações, religiões e ideologias – e isso impediu-me de ser portador de verdades absolutas sobre tudo, à parte os fundamentos da minha Fé, como cristão e como católico. Mas aí mesmo, com respeito integral sobre caminhos espirituais, religiosos, filosóficos assumidos por outros, com a honestidade que cada um assume no seu diálogo com a vida – sabendo bem que se converte pelo exemplo e só, num mundo onde as conversões são suspeitas (ou são forçadas…) e todo o proselitismo é banido… ou fanatizado, radicalizado.

Assim, estive sempre de espírito aberto para aceitar e respeitar o que explica e justifica até, diferentemente, a vida dos meus semelhantes, animando-os, motivando-os, explicando-os no seu quotidiano que, nas referências fundamentais, constroem de forma diversa do meu.

Mas claro que, neste universo sincrético que a vida foi moldando em mim, a Europa e a África foram as grandes escultoras, seguidas da Ásia.

 

Faróis de Humanidade

Releio brevemente a minha crónica, de há quinze dias, onde discorria, entre outras coisas, sobre José Mujica, o Presidente-pobre. E como muitas vezes me acontece, dá-me vontade de escrever principalmente sobre todos esses casos, quase milagrosos, de magnífica humanidade, semelhantes ao seu.

Porquê? Porque são como faróis a impedir que, nas nossas existências anónimas, sejamos quebrados pelo desalento, perante o mal que tinge, atinge o mundo, neste nosso tempo.

Howard Schultz, num registo completamente diferente de José Mujica, é um farol no campo empresarial.

Carlos Frota 

Universidade de São José

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