O Nosso Tempo

Os quatro Reis Magos.

Não, não me enganei, nem li mal a narrativa bíblica da Natividade. Eram três Reis Magos visíveis. Um era invisível. Não se vê no presépio. E não oferece nada comparável com ouro, incenso e mirra. Tem estado oculto e é cada um de nós, com as nossas ofertas de sempre: de dúvidas, angústias, tropeções, quedas, mesmo descrença. E por vezes, pequenos sucessos de abnegação e generosidade. Foi aliás o rei mago invisível, esta pobre humanidade que nos é comum, que selou o destino do Menino e o levou à Cruz. Assim acreditamos nós ,os cristãos.

De novo o Natal, pois, e o nosso dever de, como crentes, revisitar, no interior de cada um, a gruta de Belém. E de ali retomar energia para um novo começo. Ainda não foram encontradas outras chaves que abram as portas da eternidade, excepto, a título de empréstimo, as da gruta de Belém. Mas a gruta é tão longe… e não temos estrela que nos guie… – diremos no nosso desatento.

Mas não há nada que enganar. Ao contornar as esquinas da vida, é sempre, na rua em frente, a casa mais humilde, a hospedaria de gente pobre. Que, de superlotada, já não tem lugar vago…

 

Caminhos do Papa, caminhos da Igreja

Simplificando como as parábolas dos Evangelhos o fazem, a história do Cristianismo é, nestes vinte séculos, uma história quase prosaica, de pastores e de rebanhos.

“Eu sou o Bom Pastor”, ouvimos dizer, Àquele que primeiro evocou essa imagem. “E o bom Pastor apascenta as suas ovelhas”, continuou o Mestre. E porque bem conhecia a facilidade com que o rebanho se dispersa, tranquilizou-nos dizendo que viria à nossa procura, individualmente, se cada um de nós fosse a ovelha tresmalhada.

A nossa Fé repousa pois nesta verdade simples de uma história quase infantil? Bem, o Cristianismo tem outras histórias do maravilhoso. Do maravilhoso cristão, exactamente, como nos ensinaram, ao distingui-lo do maravilhoso pagão…

Por virtude da sucessão histórica na cadeira de Pedro, o Papa Francisco é, desde 2013, o nosso PASTOR. Que pastor tem sido o Pontífice? E para que rebanho?

O individualismo, reinante hoje, principalmente nas sociedades de abundância, onde a solidariedade se esquece e o espírito de competição prevalece, é o exemplo mais recente do rebanho que preferiu dispersar-se, recusando a direcção do pastor.

Basta, aliás, a referência ao “rebanho”, quando se reflecte sobre certos movimentos sociais e políticos, como os de cariz autoritário na Europa do século XX, para sobressair a conotação negativa da imagem.

Perante sociedades de gente mais egoísta e mais desperta, como nunca, para os males sociais, o Papa Francisco é hoje o Pastor, ou um dos pastores, se se quiser abrir espaço a outras denominações cristãs e não cristãs.

São muito numerosas hoje as sociedades que celebram uma civilização triunfante, porque finalmente liberta de Deus. Nesses círculos o Papa é visto como uma espécie de sábio à moda antiga, evocando uma sabedoria quase sem aplicação contemporânea. Inaplicável principalmente para os “intelectuais” que descobrem a liberdade para aquém e para além do divino ou, se crentes, tentam uma fé para aquém ou para além da religião.

 

Ser Papa numa civilização pós cristã?

E por que não, para os líderes religiosos respectivos, pós-budista, pós-taoista, e mesmo pós-islâmica para os desafectos do Islão tradicional? Afinal, não corrói o materialismo todas as sociedades que se “modernizam”?

Mas, no contexto multicivilizacional e multicultural da comunidade cristã, que personagem encarna o Papa, como outros líderes religiosos, nos seus contextos próprios?

Estamos a viver numa época que muitos pretendem pós-religiosa. O que é obviamente inexacto, a atestar pelos milhões que acolhem o Santo Padre em todo o mundo. Mas perante o deserto espiritual (principalmente das elites) é Francisco o sucessor dos Apóstolos, ou antes e cada vez mais o sucessor de João Baptista, “a voz que clama no deserto”(?) Se calhar encarna o duplo papel, de anunciador da Boa Nova e também de testemunha de Cristo já ressuscitado.

Perante o vazio filosófico duma sociedade que inaugura todos os dias novos supermercados, mas onde não existem prateleiras de sabedoria em pó, ou liofilizado, o planeta precisa de muitos papas Franciscos, isto é, de muitos sábios de todas as religiões – precisa mesmo de uma Cimeira de sábios… para repensar o mundo.

O Papa Francisco tem mais do que ousadia e abertura de espírito para organizar uma grande cimeira das religiões, dando expressão máxima ao seu espírito ecuménico. Ampliando assim os habituais encontros de Assis, por exemplo. Para quê? Para repensar o mundo, repito. Onde sejam reconduzidos ao seu lugar próprio, e não mais do que isso, obsessões actuais que a Comunicação Social internacional explora, porque lhes dá lugar preeminente ao servir-lhes de veículo. Como a intolerável omnipresença da política e da economia no quotidiano das nossas vidas. Como se a vida toda fosse só… economia e política.

 

Ir ao encontro do estrangeiro

Trava-se, em vários lugares do mundo, uma batalha surda ou declarada, para defesa das identidades comunitárias, no contexto e por oposição à globalização, vendo nós hoje, porventura melhor do que antes, que as religiões se situam no centro mesmo das culturas e das civilizações.

Porquê? Basicamente porque, ligando o humano ao divino, legitimam e renovam incessantemente a coesão dos diferentes espaços civilizacionais fontes primeiras e últimas que são dos valores éticos e, por isso, dos valores da cidadania.

Não há subordinação pacífica à autoridade que não por uma atitude moral do cidadão para com o poder político. E, como complemento, uma postura ética, de serviço, da autoridade para com a comunidade a que pertence. E o Papa Francisco percebe isto como poucos, até porque o seu caminho de vida pessoal e eclesial o tem levado ao contacto com gente das mais diversas origens.

Mas quando a globalização força as sociedades a abrirem-se, pondo em contacto, como nunca antes, gente das mais diversas origens, é também à religião que fazem apelo os mais “puros”(?) de todas as latitudes, os utópicos da pureza original, eternos saudosos do regresso à Utopia.

E assim o califado para regressar ao paraíso terrestre original. E a civilização cristã e branca fazendo frente ao califado. E o califado a reforçar, por todos os meios modernos disponíveis, o apelo ao arregimentar dos prosélitos para uma comunidade dos crentes que puna os infiéis e os exclua ad aeternun.

Num mundo onde a prática religiosa é, não só acto de piedade, mas acto de identidade (o rezar na rua, como exigência de reconhecimento), percebe-se o potencial político, para a paz ou para o conflito, de todas as religiões.

O Papa reconhece esse potencial e por isso a todos se dirige, como se viu recentemente em Myanmar e no Bangladesh.

Carlos Frota 

Universidade de São José

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