Num desses fascículos publicados nos jornais numa época em que se recorria a mil e tantas tentativas de vendas – sim, os tais que se encadernavam posteriormente dando origem a excelentes enciclopédias – fui confrontado com uma série de feitos da humanidade em determinadas áreas, facto que me provocou logo comichão na extremidade do lóbulo da orelha esquerda, sinal de curiosidade espevitada. Ora, apesar de se destinarem a leitores nacionais, embora a proveniência seja estrangeira (valham-nos os intérpretes!), nesses fascículos não se fazia uma única menção a portugueses ou a qualquer personagem que em Portugal tenha medrado.
Tomemos, a título de exemplo, o dicionário visual “O Corpo Humano e Outras Grandes Máquinas”. O avião, o automóvel e o barco são as máquinas aí referidas. Se bem que, no que respeita aos dois primeiros – se exceptuarmos a passarola do Bartolomeu Gusmão e pouco mais – não demos contribuições significativas à humanidade, já no terceiro tivemos todos os trunfos na mão e fartamo-nos de os colocar na mesa.
O capítulo “Navios e Navegação” do referido dicionário bem menciona os “primeiros barcos”, os “navios gregos e romanos”, os “barcos vikings”, mas na altura em que avança para os “navios de guerra e de comércio” e o “desenvolvimento da vela” não é feita uma única referência ao povo que dominou os mares durante quase dois séculos e se mostrou mestre na arte de navegar, legando ao planeta terra o sexteto e o astrolábio assim como os mais belos mapas desenhados até hoje. Não deixa de ser insultuosa tamanha omissão.
Vejamos então o que nos tem para dizer o fascículo, que não é mais do que a simples tradução da “Visual Dictionary, Ships and Sailing” publicada em 1991 pela Dorling Kindersley, em Londres: “A partir do século XVI, os navios passaram a ser construídos com uma nova forma de casco forrado com tabuado liso. Os navios de guerra dessa época, como o Mary Rose do rei Henrique VII da Inglaterra” (claro! de que mais se haveria de falar), mencionando de seguida que os “dhows transportavam escravos da costa leste de África para a Arábia” e que os “chineses navegavam em juncos para a África Oriental e a Arábia”.
Mas se até o insuspeitável Carl Sagan nos desprezou profundamente ao referir a suprema “importância dos holandeses na expansão do século XVI”, sem se dignar fazer uma única menção ao papel desempenhado pelos portugueses, já não admira tanto a branca histórica nas mentes dos responsáveis da Dorling Kindersley de Londres.
Mas será que não poderiam ao menos, os responsáveis pelo suplemento, ter feito uma adaptação ao texto, enriquecendo-o. Ou melhor, ter chamado a atenção do editor inglês para a lacuna. Pois pode dar-se o caso deste último desconhecer os feitos lusitanos devido à nossa estatal crónica falta de divulgação.
Um país em segunda mão. É o que somos aos olhos do mundo. E quão pouco é aquilo que fazemos para alterar o pantanoso estado das coisas.
“Portugal sonho e descobertas” foi o tema de um colóquio realizado aqui há uns anos no Grande Anfiteatro da Sorbonne, em Paris. O reitor dessa universidade afirmaria que “era importante dar a conhecer em França uma das grandes literaturas do nosso continente e uma das culturas que mais esteve em contacto com a nossa”. Apesar disso, o “nosso amor” pela França nunca foi retribuído e a França só não faz mais o desviar a sua cultura da portuguesa porque não pode. Pois é, nem sempre os amores são recíprocos. E então nas namoriquices portuguesas com o resto do mundo, a balança fica quase sempre a pender para o lado de lá. Uma boa verdade nunca é fácil de engolir.
Os franceses, por exemplo, só recentemente descobriram o paiol de pólvora, apesar de lá terem o rastilho, pelos menos desde a década de sessenta. Ou melhor dizendo. Os franceses só agora vêm descobrindo a nossa literatura, apesar de lá terem milhares de portugueses a trabalhar há décadas. Ou será que julgavam que esse povo, rude e forasteiro, esse povo “com mulheres de bigode e pêlo nas pernas, n’est ce pas?”, apenas servia para lhe limparem as casas, remendarem-lhe o asfalto e fazerem-lhes as contas nas caixas registadoras dos hipermercados? A nata intelectual francesa desde sempre se mostrou relutante em admitir o valor literário português, até porque…“les lumières, c’est nous, non?”. Os franceses só agora descobriram a nossa literatura. E eu exclamo: “E depois?” Não fizeram mais do que a sua obrigação. Mas nós não. O nosso discurso continua a ser o de quem quase agradece o facto de nos terem “descoberto” – muitos séculos depois de darmos cartas no panorama mundial da literatura (esquecem-se porventura de Camões, Vieira, Gil Vicente, Mendes Pinto, só para citar os mais antigos…) – merci beaucoup! de terem dado connosco “com um brilhozinho de exotismo nos olhos” e de acharem a nossa escrita “très chic”… Enfim, santo miserabilismo. Mas, como diz o povo e muito bem: “mais vale tarde do que nunca”.
Joaquim Magalhães de Castro