O Nosso Tempo

Pequena introdução à vida selvagem

Quem gosta de ver documentários sobre a vida selvagem, mormente sobre o comportamento dos animais, condicionados pelo seu instinto de sobrevivência, não deixa de ficar surpreendido com a analogia entre tal comportamento e reacções humanas quase equivalentes, na competição entre indivíduos e, por isso, entre comunidades.

Daí não ser despropositado olhar para a vida internacional (também) sob o óculo do especialista em Zoologia – que atenta mais no modo como os animais interagem e na hierarquia das espécies, do que na visão idílica da paz entre… lobos e cordeiros.

Na simbologia bíblica, esta visão, a da coexistência pacífica das espécies, é a antecipação mesma do Paraíso. Mas este tem morada desconhecida para quem, como nós todos, tem apenas como instrumento de construção do mundo, isto é, o cimento, a espátula, o martelo e a enxada, apenas, repito, a nossa condição humana, expressa na nossa inteligência, na nossa vontade e nas nossas emoções…

Ao observar-se, por exemplo, as estratégias de grupo, dos leões às hienas, para isolar a próxima vítima, extraindo-a da manada que a protege, fica-se perplexo com a semelhança com o que estrategos, militares e políticos, aprendem e ensinam regras idênticas, desde tempos imemoriais.

E quanto ao exemplo oposto, isto é, o do devorador esfaimado que se insinua no meio das vítimas e que ataca a partir de dentro, aí está o do guerrilheiro que se confunde com a população da floresta; ou agora, infelizmente para nós todos, o do terrorista, drogado pela utopia, que faz exactamente o mesmo, na selva urbana, camuflado pelo anonimato de gente comum.

 

Os ditames da sobrevivência

Toda a teoria dos conflitos, tendo por causa a escassez dos recursos naturais, desde a água ao solo arável, aproxima-nos ainda mais da realidade básica donde surgimos, como animais superiores, visão que qualquer darwinista incipiente (não sou senão isso mesmo) confirmará.

O contributo das civilizações, no decurso dos milénios, foi o de tornar mais sofisticadas, menos aparentes, estas realidades básicas.

Sem as contrariar, antes apropriando-se delas, política e diplomacia, com os seus objectivos de ordem e domínio, de paz e conquista, souberam vestir tais realidades com o manto da autoridade, e ao mesmo tempo da persuasão, que se impõe pela força mas que se legitima pelo serviço. E que se reforça pelos valores partilhados.

 

Chaves para compreender

Os sistemas éticos e os ensinamentos das grandes religiões, muitas vezes interligados, representam o estádio superior do homem que se questiona como vivente. E se reconcilia, segundo certos princípios, com o viver em grupo.

Mas o Homem é o que é: essa complexa construção de vários andares, em que o animal está apenas adormecido no corpo do artista, do filósofo e do profeta, para não dizer também do político, do diplomata, do militar.

É esta a natureza humana. E é com esta mesma argamassa que as civilizações e as culturas se foram construindo e desenvolvendo, independentemente das geografias.

Também nisto, e por causa disto, somos estruturalmente todos iguais.

 

A insustentável aspereza dos muros

Para quê e porquê esta minha digressão por conceitos, ideias, princípios, tão abstractos?

Respondendo honestamente, direi: porque preciso de uma chave de leitura para compreender o mundo. Para compreender os acontecimentos, para decifrar os comportamentos, para antecipar, se possível, as evoluções.

Tudo isto me ocorreu a propósito das visitas que Donald Trump fez à Arábia Saudita, a Israel, ao Vaticano, a Bruxelas e à Sicília.

Em Riade vendeu milhões em armamento e, enquanto isso, falava de paz entre árabes e judeus. Em Jerusalém “comprou” o discurso dos judeus ortodoxos que não admitem concessões. No Vaticano não vendeu nada, mas continuou a falar de paz. O Papa ouviu…

E apontou o dedo ao diabo disponível, o Irão, com quem o mundo sunita e Israel terão que conversar longamente, Deus queira que em tempo não longínquo…

Porque pessimista como pessoa e com imenso sentido da oportunidade, própria do mundo dos negócios, Trump não acredita na paz, mas nas oportunidades da ausência de paz.

De rastos fica, internacionalmente, com tal exemplo, um sistema político que elegeu quem elegeu…

Tratou mal os colegas europeus, desvalorizou os laços que historicamente os unem, e tudo isto com a arrogância de um imperador de pacotilha!

A sua vontade íntima (falo no plano simbólico, claro) era, qual Nero reeditado, a de incendiar Roma para construir uma nova, cheia de torres Trump. Mas Roma há-de resistir!

 

A crua realidade sem filtros

Foi uma semana em pude ver melhor a realidade do nosso mundo… sem óculos. Sem os óculos filtrantes da cultura e da sensibilidade, das exigências do espírito ou da delicadeza da simples educação.

O dedo em riste, a voz ficticiamente contida, a ausência de serenidade no rosto, onde oscila a impaciência e a euforia egocêntrica, dominadora – tudo o rosto espelha.

O novo Presidente americano, pela crueza do personagem, pela ausência total de nuances, contém em si o irresistível convite a que melhor se perceba um certo modo de actuar, no tablado da política internacional.

E como não tenho as obrigações diplomáticas do Santo Padre, não tenho eu próprio que me auto-censurar, para escrever só o diplomática ou politicamente correcto: Trump é uma espécie de dádiva que os deuses ofereceram aos especialistas da Arqueologia e da Antropologia Políticas. É o excelente exemplar para ser dissecado cientificamente! É mesmo, perdoe-se-me a força da analogia, uma espécie de homem das cavernas, num banquete servido com delicada porcelana chinesa, mas usando troncos de árvore no lugar dos civilizados pauzinhos…

Aquilo que os outros pensam mas não dizem, ele diz. Aquilo que os outros pensam mas não fazem, ele faz. Aquilo que os outros não pensam, não dizem e não fazem, ele pensa, diz e faz.

Tudo isto faria dele um grande líder do seu país, como o eleitorado que nele votou certamente imaginou que fosse, se tivesse profundidade no pensamento e consistência nas opções. Falham-lhe ambas.

Trump é uma espécie de sobrevivente de fora da barca de Noé, de antes portanto do Dilúvio. Nem a cólera do Senhor o derrotou!!!

Carlos Frota 

Universidade de São José

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