Uma voz que clama no deserto
Assim se poderia dizer do peregrino vestido de branco, tão frágil, por vezes, no meio das multidões que constantemente o acompanham.
É um homem que, sem reserva mental ou agenda política escondida, clama pela paz num mundo violento. O Papa peregrino foi ao Egipto pregar esse Evangelho da Paz.
Segui a visita como sempre faço, em deslocações semelhantes: procurando interpretar, o melhor possível, as várias dimensões das suas mensagens, e tentando igualmente perceber o seu eventual impacto, nos múltiplos destinatários.
EGIPTO – O CONTEXTO
Ao mencionar-se o país que o Papa acaba de visitar, importa não esquecer o contexto social, político, religioso que dominava há poucos anos atrás, antes da chegada ao poder do general Al-Sisi, campo de batalha em que o Egipto se convertera, na tentativa quase conseguida de vitória política decisiva do Islão radical, com a subida de Morsi ao poder.
O mesmo Mohammad Morsi que assumira como seu, na presidência, a frase-chave, o moto, dos Irmãos Muçulmanos: “O Corão é a nossa Constituição, o Profeta o nosso líder, a jihad (o combate) a nossa via e a morte em nome de Alá é o nosso objectivo”.
Se algum argumento de fundo persiste, pois, decorridos alguns anos já, como razão “justificativa” do golpe de Estado que conduziu o general Al-Sisi ao poder, destronando o Presidente eleito Muhammed Morsi, tal razão reside na vontade de fazer soçobrar o projecto de islamização total da sociedade egípcia, segundo uma agenda defendida pelos Irmãos Muçulmanos, a força política por detrás do chefe de Estado entretanto deposto.
A vitória política do actual Presidente – entretanto legitimado pelo voto popular, mas só depois de uma purga severíssima nos meios radicais islâmicos – significou a vitória de uma elite urbana e de mentalidade moderna, contra o conservadorismo rigoroso da irmandade islâmica, apoiada esta pelas periferias pobres e pelo país rural.
A vitória de Al-Sisi foi igualmente a de uma juventude egípcia saudavelmente ambiciosa que olha para o mundo mais largo e mais aberto, sem trair necessariamente a sua Fé. Mas não querendo que a religião se sobreponha à Ciência e à Cultura. E foi também a vitória de um larguíssimo sector das Forças Armadas, não tocado pela infiltração do radicalismo religioso.
Mas tal só significa que o País continua dividido. O Egipto não é ainda uma sociedade em paz consigo própria, reconciliada por ter feito a escolha espontânea da tolerância contra a violência. E foi a essa sociedade ainda ferida no seu íntimo que o Papa falou, sugerindo no fundo um perdão recíproco dos egípcios entre si.
FALAR DA PAZ, CELEBRAR O DIÁLOGO
Ao encontrar-se, pois, com as autoridades políticas e religiosas, e personalidades da sociedade civil, o Papa dirigiu-se a uma audiência de opositores ao Islão radical, abertos para ouvir a sua mensagem de paz.
A começar desde logo pelo reitor e professores da Universidade de Al-Azhar, centro teológico do Islão, com quem o actual Presidente egípcio mantém uma cuidada relação de proximidade e de grande respeito institucional, pela influência que esta Universidade exerce sobre largos segmentos do pensamento sunita. Tal audiência estava naturalmente conquistada para a tese da religião – qualquer religião – como instrumento de paz e de concórdia entre os povos.
Mas o objectivo prioritário da mensagem do Papa foi o de falar para os milhões que ali não estavam fisicamente, e para os quais destinou o apelo à total ilegitimidade da violência. O repúdio do matar e destruir em “nome de Deus” seria ideia variadíssimas vezes glosada, nas sucessivas intervenções de Francisco. O único extremismo admissível para os crentes, recordou enfaticamente, é o radicalismo da caridade, o do amor dos outros.
A UNIDADE ENTRE CRISTÃOS
No Egipto, o Papa chamou a atenção da Igreja universal para uma comunidade de irmãos na Fé – os cristãos coptas – que, fora do conforto morno de outros lugares, pagam com a vida o simples facto de crerem.
E as rigorosas medidas de segurança impostas pelas autoridades do Cairo, durante a visita, revelam bem o quanto a pátria de faraós e profetas, e da Sagrada Família por alguns anos, é hoje palco de violência extrema, como o provam os recentes ataques às igrejas coptas, com o seu cortejo de vítimas inocentes.
Neste contexto, o encontro comovente com o Papa Tawadros II foi o mais simbólico. E a declaração conjunta sobre o reconhecimento recíproco da validade do baptismo nas duas Igrejas representa um passo significativo para a unidade.
Sobre o tema da aceitação das diferenças doutrinárias, no contexto do diálogo intra-cristão, diria peremptoriamente, dirigindo-se ao seu Irmão o Papa Tawaros II, chefe da Igreja Copta, ter chegado a hora de se fechar o capítulo das divisões históricas só porque são diferentes as interpretações (sic) dos diferentes pontos doutrinários.
Constituiu pois esta visita um forte apelo à unidade, sarando feridas de um passado de diferenças.
EGIPTO, CIVILIZAÇÃO E TOLERÂNCIA
Da conversa a sós com o general Al-Sisi nada transpareceu, mas no encontro com as autoridades civis e religiosas, logo a seguir, e a que o Presidente assistiu, o Santo Padre foi igual a si próprio, sempre fiel à mensagem de que é portador, na visita a cada país e a cada comunidade nacional com quem convive mais de perto.
Isto é, valorizou o papel do Estado anfitrião, pela respeitosa evocação do seu passado e das suas tradições. Neste caso, com o especial peso que o Egipto tem, país de origem de uma civilização milenar que se foi construindo na pluralidade, e aceitando por isso as sucessivas contribuições dos Outros.
O Pontífice valorizou igualmente o papel do Egipto contemporâneo na construção da paz no Médio Oriente. E fez referência, neste contexto, à Palestina, lembrando implicitamente a disponibilidade de mediação permanente, inaugurada pelo malogrado Presidente Anwar Sadate e que constituiria a espinha dorsal da diplomacia da região.
E quanto aos diferentes males das sociedades e à ética das autoridades para os combater, o Papa denunciou, de forma genérica, a sede e ambição de poder, as desigualdades económicas e o comércio de armas, no cerne da conflitualidade permanente de que as populações inocentes são vítimas.
O Papa Francisco sabia bem que pisava terreno sensível, ao evocar tais temas, dada a sucessão de acontecimentos que, desde a eclosão da chamada Primavera Árabe, transformaram a paisagem política do Egipto, tentando superar, por um movimento popular de revolta contra o “status quo”, três décadas caracterizadas pelo aparente imobilismo do velho Presidente Hosni Mubarak.
À GUISA DE CONCLUSÃO
As palavras do Santo Padre têm sempre, pelo menos, quatro universos, complementares, como alvo: o interior da Igreja Católica; o relacionamento desta com as outras Igrejas cristãs, no esforço de unidade; o diálogo com outras religiões, para sublinhar valores comuns; e uma reflexão sobre a sociedade em geral, com os seus cidadãos, os seus líderes e as suas instituições.
Esta visão pluridimensional, no que diz respeito à visita ao Cairo, inspira perfeitamente o conjunto dos eventos, encontros e intervenções do Papa, nas vinte e três horas que passou na capital egípcia.
Carlos Frota
Universidade de São José