O que lhes dirá Francisco?
Daqui a exactamente uma semana, no dia 24 de Março, o Santo Padre receberá no Vaticano os Chefes de Estado e de Governo da União Europeia, que se deslocarão a Roma para celebrarem o 60º aniversário do Tratado conhecido pelo nome da capital italiana, porque ali assinado, como carta fundadora das comunidades europeias.
Não creio que, em décadas mais recentes, tantos responsáveis políticos, ao mais alto nível, do Velho Continente, se tenham encontrado, ao mesmo tempo, com o líder da Igreja Católica.
Muitos ter-se-ão deslocado a Roma, ou mais exactamente ao Vaticano, pela primeira ou última vez, para as exéquias de João Paulo II, dado não só o impacto da presença mediática do Papa polaco à escala global, mas do seu papel político concreto no contexto internacional do seu tempo.
Outros terão comparecido, porventura, nas missas inaugurais dos pontificados de Bento XVI e de Francisco. E outros nem isso, porque na Europa as figuras políticas têm, por assim dizer, um “prazo de validade” – o que é óptimo em relação a muitos, mas quase trágico em relação aos que fazem mesmo falta e era importante que prosseguissem. Mas regras são regras e essas, pelo menos, vão sendo cumpridas.
A sede da ONU em Nova Iorque pode ter sido também local para muitos encontros.
Embora para grande parte dos políticos presentes o encontro da próxima semana não passe de uma visita meramente protocolar, para os outros, talvez uma minoria ainda muito significativa, o discurso que o Papa lhes vai dirigir pode calar mais fundo. Mais fundo, pelo menos, pela novidade do locutor e alguma singularidade da proposta, do que essas outras mensagens que se reportam à ração quotidiana de diatribes nacionais e ou das quezílias com ou em Bruxelas.
Se a política é muito frequentemente uma gritaria (perdoe-se-me o desabafo nada diplomático…), a Cidade do Vaticano reservará a todos, pelo menos, alguns momentos de silêncio e de reflexão!
Um discurso sem surpresas?
O que dirá Francisco aos líderes europeus que não posamos antecipar já? De facto, o que vai dizer o Papa a esse minúsculo universo de personalidades muito específicas sabemos todos, praticamente. Porque vamos conhecendo o Papa Francisco, o seu estilo e sobretudo a centralidade das suas mensagens.
Mas como o dirá, só ele sabe… porque só o Papa possui o carisma especial que se lhe reconhece, construído com o cimento modesto da sua humildade e com uma reflexão permanente sobre a História, reflexão que o não faz prisioneiro de coisa nenhuma.
E aqui, nesta dupla circunstância, a do actor internacional diferente e a do intérprete de uma História que nos ultrapassa, é que reside a característica distintiva do sucessor de Pedro em relação aos líderes que vai acolher. Porque Francisco não é um líder político… ou, se quisermos ser indulgentes para com a tentação hoje dominante de se politizar tudo, Francisco não é só, nem principalmente, um líder político. E não é só, embora essencialmente o seja, um líder religioso.
A presença viva no mundo da mensagem cristã, que um quarto da Humanidade exige, supõe espiritualidade, mas também as estruturas físicas que o Papa chefia e em que essa vivência se exprime.
A Igreja, triunfante e pecadora, como se diz intramuros, é essa face visível com as suas glórias e as suas misérias. E o Papa é um líder diferente porque de nada está dependente. Nem dos jogos de poder nacional, nem da satisfação de eleitorados, nem das exigências reais ou fabricadas das políticas externas dos países – de nada!
Liberdade invejável a desse homem que pode falar como sente ou quase. O “quase” fica naturalmente para o desespero que de vez em quando também sentirá, perante dificuldades internas na imensa organização que lidera. Mas, sobretudo, pelas opções políticas nacionais ultrajantes, quando postas em confronto com valores essenciais da pessoa humana. Mesmo na “tão” democrática Europa!
E Francisco tem ainda uma outra característica essencial que o converte em testemunha única, e também em actor único, desta História que o Homem faz, mas que não sabe como faz e por que faz. O Cristianismo não é uma ideologia, mas uma vivência.
E se o seu tempo é forçosamente o tempo histórico, o Papa, como todo e qualquer cristão, é um espectador, não necessariamente passivo, do tempo que flui e não pode ser aprisionado.
O tempo cristão não pertence a ninguém. O tempo político, esse, é diferente… pois é o tempo domado, controlado, pelas organizações da sociedade.
A parábola esquecida
A do bom samaritano, claro. É reportando-se a valores essenciais que o Santo Padre não poderá omitir o caso flagrante da reacção hostil de tantos Governos europeus quanto aos refugiados.
Como esquecer as famílias, os velhos, as crianças, que morreram e morrem nas praias da Europa ou tentando abeirar-se delas, ou deambulam de fronteira para fronteira, à medida que as portas se vão fechando?
Como desmontam (ou pelo contrário instigam) certos Governos da Europa o pânico colectivo, perante uma inexistente invasão muçulmana, uma iminente perda de identidade que só existe na cabeça de alguns, ou o receio descontrolado de ver em cada refugiado um bombista suicida?
Mas o Papa não denunciará só, porque não é esse o tom das suas intervenções. Convidará pelo contrário a Europa a ser pro-activa nas políticas de acolhimento e de integração. Aplaudindo implicitamente os Estados que generosamente as implementam já.
As fobias da Europa doente
Outro assunto com este conexo será, inevitavelmente, o da tolerância religiosa, num continente cuja História está ensanguentada por guerras de religião, com nações que pretenderam superar essa doença com o credo secular (uma outra religião… ou quase) e cujas populações recaem hoje, espontaneamente ou manipuladas, na antiga tentação de condenar quem reza a um Deus “diferente”.
Como homem que vai tecendo pacientemente as malhas da unidade entre cristãos, correndo o risco de ser mal compreendido entre os seus, e de construir pontes com as outras religiões para um diálogo universal sobre a condição humana, Francisco não pode deixar de falar da responsabilidade que têm os líderes visitantes de organizarem um espaço público onde todos caibam.
Quanto ao terrorismo, e quanto à sua pretensa motivação religiosa, a condenação, o anátema do Papa, muitas vezes já reiterado, não pode ser mais claro.
Resta a Europa da economia, geradora de injustiças e das pretensas soluções populistas. O risco do populismo de direita é que ele é sempre mais papista que o Papa! E mesmo mais: é melhor cristão que o próprio Cristo.
E daí o perigo de, na Europa, católicos de boa consciência votarem em líderes que, numa mão, empunham a Bíblia, mas mentalmente recitam, porque os sabem da prática quotidiana, os cínicos preceitos de Nicolau Maquiavel.
Irá o Santo Padre referir-se ao actual momento político europeu? Não o fará de forma directa, mas os recados serão compreendidos por todos.
Carlos Frota
Universidade de São José